Fernando Henrique Cardoso enxerga “um forte sinal de esperança” nas ações que resultaram na retomada de territórios dominados por traficantes no Rio. Acha, porém, que o êxito da estratégia de combate às drogas depende de providências adicionais. A sociedade, diz ele, precisa romper um “tabu”.
Defende a abertura de um debate sobre “as questões fundamentais da descriminalização e da regulação do uso das drogas”. Sem a descriminalização, sustenta o ex-presidente da República, “o Estado enxugará gelo”. Seu ponto de vista foi exposto num artigo.
Como ocorre todo princípio de mês, o texto de FHC vai às páginas de vários jornais do país neste domingo (4). “O golaço carioca”, eis o título. O “golaço” a que se refere FHC é “a entrada do Estado no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro”, duas cidadelas da bandidagem do Rio.
Atribui o feito à “cidade do Rio de Janeiro e não apenas ao seu governo, à polícia ou às Forças Armadas”. Acredita que “a articulação entre governo, polícias e Forças Armadas foi importante”. Deixou ao país uma “lição”.
“Sem articulação entre os muitos setores envolvidos na luta contra o crime organizado e sem disposição de combatê-lo a batalha será perdida”. Mas realçou: sem o apoio da “sofrida população do Rio”, especialmente os habitantes das “comunidades atingidas pelos males da droga”, o êxito “não teria sido possível”.
FHC enalteceu os méritos das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), meninas dos olhos do governador fluminense Sérgio Cabral (PMDB). Contou que esteve no morro Santa Marta depois da chegada de uma UPP. “Pude ver que o medo e o constrangimento da população local haviam desaparecido”.
Acrescentou: “A droga ainda corre por lá, mas entre usuários e não nas mãos de traficantes locais”. Para FHC, “há o que comemorar”. Nessa matéria, parece concordar com Lula, que defednde a “exportação” do projeto do Rio para outros Estados.
Graças à presença da Polícia Pacificadora, escreveu FHC, as comunidades livram-se “da sujeição ao terror do tráfico”. Libertam-se também “das regras de ‘justiça pelas próprias mãos’ ordenadas pelo chefões locais e cumpridas por seus esbirros”.
Reconhecidos os méritos do projeto, FHC pôs-se a discorrer sobre “as perguntas e preocupações que assediam o avanço. Para ele “a vitória inicial será de Pirro” se não for seguida de providências complementares.
Listou: restabelecimento das normas da lei, permanência da força policial, estabelecimento da Justiça comum, eliminação do tráfico nas escolas, criação de mercados locais interconectados com os mercados formais da cidade e provimento de educação e emprego aos “aviões”.
Avião é o apelido dado aos jovens que encontram no tráfico oportunidades de emprego mais rentáveis que as ofertadas mercado formal. FHC esclareceu que não ilumina os desafios com o propósito de “diminuir a importância do que já se conseguiu”. Preocupa-se em “chamar à responsabilidade todos nós”.
Envolvido num documentário sobre drogas, FHC contou no artigo que está “muito impressionado” com o que viu e aprendeu. “Estive em Vigário Geral”, relatou. Fez entrevistas com “traficantes arrependidos e policiais envolvidos nas guerras locais”.
Entrevistou também “muitas mães de famílias, mulheres em presídios, jovens vitimados pelo tráfico”. Fez uma analogia que haverá de incomodar Israel: “Eu havia estado na Palestina ocupada por forças de Israel e vi o constrangimento a que as populações locais são submetidas...”
“...No Rio, o constrangimento imposto pelo crime organizado e às vezes exacerbado pela violência policial, que por vezes se confundem, é pelo menos igual, senão maior, ao que vi na Palestina”.
O problema, acredita FHC, não se restringe ao Rio. “A presença do contrabando, do tráfico e da violência do crime organizado está em toda parte. E a ausência do Estado também, para não falar que sua presença é muitas vezes ameaçadora pela corrupção da polícia e suas práticas de violência indiscriminada”.
Nesse ponto, FHC injetou no artigo o que considera como maior desafio. “Cabe à sociedade complementar o trabalho libertador. Enquanto houver incremento do consumo de drogas, enquanto os usuários forem tratados como criminosos e não como dependentes químicos ou propensos a isso...”
“...Enquanto não forem atendidos pelos sistemas de saúde publica e, principalmente, enquanto a sociedade glamourizar a droga e anuir com seu uso secreto indiscriminadamente, ao invés de regulá-lo, será impossível eliminar o tráfico e sua corte de violência”.
Sem prejuízo da adoção de providências do Estado –“controlar melhor as fronteiras, exigir que os países vizinhos fornecedores de drogas coíbam o contrabando”—, acha que a sociedade tem de “romper o tabu”.
Como assim? As pessoas têm de se dar conta de que “o inimigo pode morar em casa e não apenas nas favelas”. Com isso, acredita FHC, haverá disposição para discutir a sério a “descriminalização e a regulação do uso das drogas”. Algo que considera essencial para superar a fase do enxugamento de gelo.
A cruzada de FHC em favor da descriminalização das drogas –todas as drogas, não apenas a maconha— é conhecida. Ele integra uma comissão latino-americana que redigiu estudo sobre o tema. A novidade do artigo é a associação de sua pregação com as ações desenvolvidas no Rio.
FONTE: http://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/arch2010-12-01_2010-12-31.html#2010_12-04_19_52_24-10045644-0
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