Mostrando postagens com marcador Entrevista. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Entrevista. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Entrevista com Fernando Henrique Cardoso: "é preciso esclarecer Dilma sobre a questão das drogas"

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que lançou em Genebra, com outras personalidades, uma comissão global em busca de políticas alternativas de combate às drogas, se disse preocupado com o rumo do Brasil após a saída de Pedro Abramovay, que defendeu o fim da prisão para pequenos traficantes, da Secretaria Nacional de Política sobre Drogas. O ex-presidente, que teme que o país se volte à repressão em vez de combater o consumo, revela suas dúvidas em relação à liberalização da maconha, e faz um mea culpa de seu governo.
Não era novidade que Pedro Abramovay defendia penas alternativas para pequeno traficante. A demissão dele foi surpresa para o senhor?
FERNANDO HENRIQUE: Foi, pois pensei que havia um pré-consenso no governo. Quando vi que o governo atual levou a Senad do Gabinete de Segurança Institucional para o Ministério da Justiça, imaginei que teria uma integração. Quem criou a Senad fui eu, para dar uma resposta à questão das drogas através da prevenção, deixando para a Polícia Federal a repressão. Existia uma resistência no Ministério da Justiça contra a Senad.

E com a saída do Pedro?
FH: O lado da repressão pode ficar mais forte.

Não há o risco de transformar o pequeno traficante num instrumento do tráfico organizado?
FH: Ele já é. Não acredito que o pequeno traficante possa não ser penalizado. A questão é: que penalização? Se você pega um jovem que 15 anos que é avião e põe na cadeia, ele vai sair mais treinado em bandidagem. Seria bom penas alternativas.

E o que aconteceu no Rio?
FH: O governo tem que fazer o que esta sendo feito, combater o tráfico e não permitir que ele tome conta de áreas territoriais. Mas é preciso uma ação social contínua. O que acontece nesse momento? Você não esta acabando com o tráfico, está levando para outros lugares. Você esta dispersando o tráfico. Sai do Rio e vai para o Espírito Santo, para Bahia... Não estou criticando o que foi feito. É positivo. O Sérgio Cabral ao mesmo tempo está propondo a liberalização da maconha, pois sabe que o problema é imenso e que não basta ocupar a região.

O que o Brasil deve fazer sobre o tráfico internacional?
FH: A raiz do mal não é a produção, é o consumo. O que tem que haver é uma política de redução do consumo.

A liberação da maconha também não é solução?
FH: Não. Tem que haver regulação. Tem que descriminalizar, quer dizer, não passa a ser crime, pode até em certos casos legalizar, desde que regule.

O que deu errado na política do Brasil? Por que o crack aumentou tanto?
FH: Porque fizemos, todos nós, muito pouco na prevenção.

O senhor faz sua mea culpa?
FH: Lógico. Fizemos muito pouco na prevenção, ninguém imaginou que (a droga) fosse tomar essa proporção tão grande. Outra coisa muito perigosa, e por isso que pessoas defendem a legalização da maconha: o traficante que vende maconha é o mesmo que vai levar o jovem a provar outras drogas. Talvez, e eu ponho talvez porque não tenho certeza, se você regulasse o uso da maconha ao invés de proibí-la, talvez tirasse a pessoa da mão do traficante e diminuísse o risco de ela ir para o crack.

O Ministério da Justiça havia preparado um projeto para acabar com a prisão de traficantes de baixa periculosidade. Por que a reviravolta?
FH: Paulo Teixeira ia representar este projeto. O ministro Tarso Genro estava nesta mesma linha. Imagino que a presidente tenha tomado esta posição. É preciso esclarecê-la sobre a questão das drogas. É importante que o Brasil não siga um caminho reacionário. Não é conservador, é errado. Não pode ser dogmático e dizer: reprimir resolve. Não resolve. Liberar resolve? Também não.

Qual a idéia desta reunião em Genebra ?
FH: Fizemos uma comissão latino-americana sobre drogas. Ela teve impacto, porque a situação na América Latina é muito dramática, mas mudou. Mesmo esta posição que estava sendo tomada pelo Brasil é boa. E no Brasil já há descriminalização da droga: não é crime ser usuário. 

FONTE: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/01/23/fh-diz-que-preciso-esclarecer-dilma-sobre-questao-das-drogas-923589814.asp

sábado, 1 de janeiro de 2011

SENAD integra agora o Ministério da Justiça e tem Pedro Abramovay exercendo o cargo de Secretário Nacional de Políticas sobre Drogas

A Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD) integra agora o Ministério da Justiça e Pedro Abramovay deixa de ser o Secretário Nacional da Justiça, sendo substituído por Paulo Abrão Pires Junior, e é realocado para o SENAD no cargo de cargo de Secretário Nacional de Políticas sobre Drogas.  Veja seu depoimento no documentário "Cortina de Fumaça" em relação à política de drogas no Brasil.



quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

"Jogar sobre a favela o enfrentamento ao crime organizado é falácia", afirma Marcelo Freixo

Por Tatiana Merlino
Para o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol/RJ), a ação da polícia do Rio de Janeiro e das Forças Armadas no combate às drogas não enfrentam o problema com eficácia. Ele explica que os grandes traficantes operam no mercado internacional, e que tais atividades são de “muito lucro e muitas relações de poder. E nenhuma dessas características podem ser atribuídas àquelas pessoas que passavam correndo da favela do Cruzeiro para o Alemão. Aquelas pessoas tem a capacidade da barbárie, da violência e arma na mão. Mas eles não representam sequer 1% dos moradores da favela do Rio de Janeiro”.
O que está por trás desses conflitos do Rio de Janeiro?
Não tem nada de tão novo assim. Na verdade, o grande debate da segurança pública no Rio de Janeiro é sobre Estado, território, soberania e governança e que é o grande debate do Rio de Janeiro. Esse momento foi importante. Aquele era um lugar com muitas drogas, muitas armas, onde há uma determinada facção do varejo da droga. Porém, o crime organizado não está na favela. O que se organiza em favela é a barbárie do crime que conta com menos de 1% dos moradores de qualquer favela, diga-se de passagem.
O que está sendo vendido é que os traficantes estão realmente sendo realmente enfrentados. Isso é verdade?
Os grandes traficantes operam no comércio internacional, tanto droga quanto arma fazem parte do comércio internacional. Ambos estão sempre entre os quatro maiores comércios do mundo, são atividades de muita complexidade, muito lucro e muitas relações de poder. E nenhuma dessas características podem ser atribuídas àquelas pessoas que passavam correndo da favela do Cruzeiro para o Alemão, porque aquelas pessoas tem a capacidade da barbárie, da violência e arma na mão. Mas eles não representam sequer 1% dos moradores da favela do Rio de Janeiro. Então, jogar sobre a favela o enfrentamento ao crime organizado é uma falácia. O que não quer dizer que não seja importante tomar o Complexo do Alemão, e tirar de lá as armas, drogas e todo um aparato armado muito forte. Aquelas pessoas estavam lá para matar e para morrer a qualquer momento, isso tudo é verdade. Mas há uma nova polícia agora? Isso foi fruto de uma grande renovação da polícia do Rio de Janeiro? Não. Há a mesma polícia de sempre que foi alvo de muitas críticas, a maioria delas corretas. Não há uma nova polícia, há uma auto-estima, um outro olhar da população sobre a polícia, que pode e deve ser aproveitado para se fazer uma grande reformulação que essas polícias precisam.
Qual sua opinião sobre a ação policial e militar no Alemão?
Ela foi reativa, fruto de uma série de circunstâncias que afrontaram o governo. E, nesse sentido, houve uma reação que acabou sendo para o governador muito positiva. E isso, de alguma maneira, traz à sociedade um debate sobre segurança pública que é muito perigoso. A ideia de dizer que tudo no Rio de Janeiro está resolvido a partir disso, e que parte da imprensa chamou de “Dia D”, o que é uma farsa midiática. O Rio não é outro a partir desse momento. Esse é um episódio importante, repito, não dá para desconsiderar, até o olhar da sociedade é importante, mas não é um outro Rio de Janeiro que temos a partir de agora. O tráfico de armas continua muito forte e não está alterado. O próprio tráfico de drogas, a quantidade de territórios que são dominados por grupos criminosos continua muito grande no Rio de Janeiro. As milícias estão com seus líderes presos, mas suas atividades econômicas continuam funcionando à vontade. O sistema prisional do Rio de Janeiro, como do Brasil continua um caos. Não existe política penitenciária, não há controle sobre a polícia, há uma formação precária dessa polícia, há salários baixos para que a polícia seja barata e mais fácil de ser controlada. Há problemas estruturais que não estão resolvidos no Rio de Janeiro. Não há sequer apontamento do início de uma transformação e isso tudo tem que ser visto com muita calma nesse momento.
E em relação a essa ação? Há denúncias de violações por parte das forças do Estado, as entradas sem mandado…
A gente está acompanhando. A defensoria colocou um ônibus do núcleo de direitos humanos dentro do Complexo do Alemão e está recebendo uma quantidade enorme de pessoas. Para o governo, seria uma burrice nesse momento permitir que essas violações virassem regra, porque ele vai colocar a perder toda uma imagem que tentou construir, de uma operação bem sucedida, como se diz. Seria uma burrice para o governo permitir que essas ações saíssem do controle dessa determinada imagem construída. Tem denúncias chegando, também os apoios da própria população local às ações policiais está muito forte, são maiores que as denúncias. Nós nos reunimos com moradores. A sociedade civil organizada está lá dentro.
O que tivemos foi uma ação militar dentro do Complexo do Alemão. O grande questionamento é: vai ser construído uma soberania? Porque aí a gente faz um debate verdadeiro, que é o mesmo que estamos fazendo sobre as Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Elas significam construção da soberania da favela? Não. Elas representam a retomada do Estado militarmente de territórios que interessam a um projeto de cidade. Tem avanços? Tem. O próprio morador da UPP diz: “é melhor a paz armada do que a barbárie”. Mas isso tem prazo de validade.
E quais são as consequências dessa paz armada? Porque também há denúncias de violações com a instalação das UPPs?
O morador da UPP diz: “meu filho saía de casa e tinha guerra de facção na porta da minha casa, e isso hoje não tem mais. Então, melhorou”. Essa opinião do morador tem que ser respeitada. Isso não é um detalhe. É isso que faz esse morador dizer que ele quer a UPP, e o que não tem UPP querer que a UPP vá para lá. Agora, cabe a quem tem uma leitura do papel do poder público, mostrar que isso não significa soberania um novo papel da favela na concepção de cidade do Rio de Janeiro. Os moradores não tem instrumento de consulta, de participação, não tem outros setores do poder publico chegando. E boa parte das áreas da UPP não tem coleta de lixo, não tem creche, não tem boas escolas, não tem posto de saúde. Então, nesse sentido, você pode discutir que a soberania vem com a construção de políticas públicas muito maiores do que simplesmente a tomada de território. Esse é um debate que o Rio de Janeiro tem que fazer em relação ao Complexo do Alemão e todo o Rio.
Em relação às UPPS e jogos olímpicos, é possível dizer que a segurança dos jogos olímpicos é a prioridade?
Claro, é inevitável, pelos grandes investimentos que vão receber. O mapa das UPPs é revelador do papel que os jogos olímpicos vão ter na cidade do Rio de Janeiro. O que são as barreiras acústicas? Não é possível que alguém acredite que a preocupação do prefeito é criá-la em função dos tímpanos dos pobres. A mesma prefeitura que não está preocupada com creches e saneamento básico vai estar preocupada com os tímpanos dos moradores? É uma piada. Aquilo é uma barreira visível, não acústica. É para que não se veja a favela. As UPPs precisam ser pensadas com as barreiras acústicas, com as remoções, com os muros. É um projeto de cidade de que claramente tem uma perspectiva de investimento para os jogos olímpicos.
Qual sua opinião sobre a permanência da polícia no local por tempo indeterminado, e sobre o aumento de 4 milhões na folha salarial dos gastos, que serão financiados pela iniciativa privada?
Isso eu acho gravíssimo, como também acho gravíssimo o que vem acontecendo com as UPPs dessas parcerias privadas de financiamento. Eu acho gravíssimo, porque a segurança pública é um instrumento de Estado que não pode atender à lógica privada. Essas parcerias são muito perigosas.
Há interesse por trás disso?
Claro. Evidente que não tem a menor condição da polícia sair do Complexo do Alemão nesse momento, não dá para dizer isso. Agora, ela vai estar lá com que propósito do poder público? Perspectiva exclusivamente militar? Não pode. O Complexo do Alemão não precisa estar com muita polícia para gerar uma certa sensação para quem está fora do Alemão. Ele tem que ser seguro para quem mora lá. E não é só a polícia que vai garantir isso. Assim como não é só a polícia que vai garantir que a UPP seja uma unidade de polícia pacificadora. A pacificação não é um instrumento que a polícia possa garantir sozinha. Nem a do Rio e nem de lugar nenhum do mundo.
Qual sua opinião sobre essa compreensão de que a cidade esteja em guerra, que estejamos numa luta entre o bem e o mal?
Não há uma guerra, isso é um horror.
É uma ideologia reiterado pela mídia…
É a história do “dia D”…. O armamento é de guerra? Sim. O número de mortos é maior do que muitos países em guerra? É verdade. As cenas, muitas vezes podem ser confundidas com um cenário de guerra? Sim. Só que tem um elemento central. Não tem ninguém disputando o Estado. Não tem ideologia. É arma na mão e cabeça vazia. Não há disputa de Estado, de poder político. Não tem uma nova corrente disputando espaço no poder. Então não tem guerra. É a ideologia. O problema da concepção da guerra é que na guerra o objetivo é sempre eliminar o inimigo. A guerra traz implícita no seu conceito a ideia da eliminação do outro, e é o que a gente assiste por trás das políticas de segurança pública. Quando você mistura e confunde criminalidade com guerra, muda-se o papel do Estado. Você tira o papel do Estado de uma sociedade democrática, que em qualquer uma tem criminalidade, para a ideia de um Estado em guerra onde os limites são outros. Os limites legais, inclusive são outros.
E com isso se legitima ações..
Com isso se legitima, não necessariamente legalmente, mas no caldo de cultura, ações de extermínio, totalitárias e isso é muito perigoso.
Isso é o que se vê hoje no Rio de Janeiro?
Isso é o que se vê sempre. Sempre foi, veja aí quantos policias morrem e quanto eles matam nos últimos anos.
Dá para fazer um paralelo entre o que ocorre hoje e o que aconteceu em 2007, no Alemão, que levou à chacina?
Em 2007, a polícia entrou no Alemão, matou 19, saiu no dia seguinte e teve que voltar três anos depois com o aparato que nós vimos. Já tivemos a presença do Exército em 95, em 92, em 2002, em vários momentos. Quantas e quantas vezes tivemos os tanques apontando para as favelas, porque o novo inimigo não é mais o jovem universitário, o comunista, o subversivo, e sim quem sobrou de uma sociedade de mercado. Então, o aparato repressor do Estado se localiza para as favelas, que é onde moram os inimigos.
Isso é criminalização da pobreza?
Claro, o Estado opera na lógica da criminalização da pobreza. Tem, em seu sistema prisional, um instrumento fortíssimo da criminalização da pobreza. O Estado não tem a criminalização como consequência, ele tem instrumentos que fazem essa criminalização. E o discurso da guerra é fundamental para criar essa hegemonia.
Qual é sua opinião sobre a postura da mídia nesse caso do Rio?
É a espetacularização, e de um nível de irresponsabilidade atroz. Muitas vezes elas pautam o que querem ver ali, então, por outro lado é fundamental que acompanhem, que dêem noticias. Acho que muita coisa deixou de acontecer no Alemão porque a imprensa estava presente. Isso é importante. Por outro lado, esse processo de espetacularização e a utilização e determinados conceitos beira a irresponsabilidade e tem conseqüências, como o conceito de guerra.

FONTE: http://carosamigos.terra.com.br/

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

"O fim das drogas é um ideal impossível, indesejável e totalitário", afirma o historiador Henrique Carneiro

Historiador da USP aponta que política anti-drogas no Brasil é inspirada em modelo dos EUA

10/12/2010

Renato Godoy de Toledo
da Redação

A guerra às drogas tem um efeito paradoxal. Ao mesmo tempo em que as apreensões de toneladas de drogas prejudica um determinado grupo, ela favorece traficantes rivais, já que o preço das substâncias tende a aumentar. Esta é análise do professor Henrique Carneiro, historiador da USP e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip).
O historiador também ressalta que a proibição da maconha está ligada a sua origem africana na cultura brasileira. Confira entrevista abaixo.

Brasil de Fato - As ações recentes no Rio de Janeiro parecem ter como finalidade - ao menos tentam passar essa impressão - o fim de todas as drogas, com a apreensão e incineração. Existe, historicamente, relatos de alguma sociedade que tenha vivido sem substâncias psicoativas?
Henrique Carneiro - São muito raras as sociedades que tinham um ideal de completa abstinência, em geral eram estados militaristas como Esparta. A grande maioria das sociedades tem no uso de drogas, seja álcool ou outras, um comportamento universal, com enorme importância cultural e econômica. O "fim das drogas" é um ideal impossível, indesejável e totalitário.
No RJ as operações só fortalecem o tráfico, elevam o preço, eliminam ou enfraquecem uma facção, mas as outras e a própria corrupção no interior da polícia, associada com as milícias, faz o negócio continuar florescente. Na medida em que houver demanda, haverá mercado, se houver proibição, o mercado dará mais lucros.
As políticas no Brasil seguem um modelo global imposto pelos EUA em que o álcool e o tabaco, que são as drogas mais perniciosas, não são objeto de controle, mas outras substâncias derivadas de plantastradicionais como a papoula, a coca e a Cannabis são condenadas à erradicação. A estigmatização em particular da maconha tem a ver também com sua origem africana na cultura brasileira.

Qual é a sua avaliação sobre a política de combate às drogas no Brasil?
As políticas no Brasil seguem um modelo global imposto pelos EUA em que o álcool e o tabaco, que são as drogas mais perniciosas, não são objeto de controle, mas outras substâncias derivadas de plantastradicionais como a papoula, a coca e a Cannabis são condenadas à erradicação. A estigmatização em particular da maconha tem a ver também com sua origem africana na cultura brasileira.

A massa empregada hoje no tráfico de drogas não seria prejudicada com a legalização das drogas? O que o senhor acredita que possa acontecer com essas pessoas em um processo de legalização? O senhor crê em uma retaliação do crime organizado contra a legalização?
A legalização apenas, isolada de mudanças estruturais nas políticas públicas que combatam a desigualdade social, não irá trazer mudanças estruturais, mas irá deslocar um dos pretextos de alta lucratividade para especuladores financeiros e para o próprio aparato repressivo, irá tirar um instrumento de repressão social e de criminalização da pobreza e irá desvincular a circulação das drogas do tráfico de armas.

As pesquisas de opinião sempre apontam a contrariedade da população em relação à legalização das drogas. Essa opinião parece ser guiada mais por um aspecto moral do que racional. Há um caminho para inverter esse quadro?
O caminho é a explicação científica da universalidade e diversidade das drogas, da periculosidade comparada e das políticas diferenciadas para cada uma. A educação para uma cidadania autônoma, responsável e com liberdades garantidas exige um modelo de auto-controle baseado em ideais de temperança e não de abstinência.

FONTE: http://www.brasildefato.com.br/node/5267

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

“Há todo um mercado de violência e do controle da violência”, afirma Vera Malaguti

Para a socióloga Vera Malaguti, o país segue um modelo fracassado de guerra contra as drogas

09/12/2010
 
Raquel Júnia
EPSJV-Fiocruz


Nesta entrevista, a socióloga Vera Malaguti faz uma análise da situação de violência do Rio de Janeiro. Para ela, as últimas ações da polícia do Rio e das forças armadas no Complexo do Alemão demonstram que estamos seguindo aqui no Brasil um modelo fracassado de guerra contra as drogas. Vera Malaguti Batista é secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia e professora de criminologia da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Temos hoje uma política pública de segurança no Rio de Janeiro e no país?

Vera Malaguti -
Existe uma política articulada de segurança pública no Rio e no país. Sempre existiu, a ditadura tinha, o governo João Goulart tinha. Mas esta que existe agora, que está coordenada entre governo federal e estadual, tem característica diferente das outras. Acabamos de ter uma evidência aqui no Rio de que essas políticas estão articuladas.

E quais as características dessa política?


O controle totalizante sobre as comunidades pobres dentro do paradigma bélico, que é um modelo muito usado pelos Estados Unidos nas ocupações que promove. E também é um modelo usado por Israel no tratamento do Estado Palestino. Isso significa que existe um atropelo das garantias, as áreas pobres ficam transformadas em territórios de exceção, onde não regem direitos e as garantias são completamente supérfluas porque trabalham com a ideologia da segurança nacional. É o que o grande jurista argentino Raúl Zaffaroni chama de direito penal do inimigo. O governo do Rio tem a polícia que mais mata do mundo, tem toda a ideologia do confronto. Eu pensava que a política do governo federal era diferente, apesar de ter críticas a ela também. Mas agora eu percebo que as políticas estão coordenadas mesmo, o paradigma bélico é comum, inclusive com o uso das forças armadas na segurança pública, que é uma coisa muito controvertida na discussão nas escolas superiores de guerra, por exemplo. As forças armadas norte-americanas jamais entram como polícia. A não ser em casos muito especiais, como numa situação em 1993, muito pontual, e saem imediatamente. Mas eles gostariam muito que as forças armadas da América Latina entrassem nessa função porque isso faz com que desmoronem, como é o caso do México, onde essas ações das Forças Armadas são um fiasco completo, como é um fiasco completo a guerra contra as drogas. Mas é um fiasco em relação aos objetivos a que ela se propõe, porque na indústria da guerra ela é um espetáculo: vende tanques e armas para os dois lados. O capitalismo é completamente alimentado pelas guerras. Se olharmos toda a história do capitalismo, a própria história dos Estados Unidos, percebemos que nas crises econômicas a guerra levanta a economia. E nós aqui estamos incorporando esse modelito, que é um modelo fracassado. Os Estados Unidos se retiraram do Iraque fracassados, estão se retirando do Afeganistão sem possibilidade de vitória, mas a indústria bélica e seus serviços são vitoriosos.  E é essa indústria bélica que agora está sendo mimetizada para as políticas de segurança pública, porque política de segurança pública não tem nada a ver com o que está acontecendo, com a guerra. Tanto que o Nelson Sá, aquele jornalista da Folha de São Paulo, compara a cobertura da Globo sobre o que aconteceu no Complexo do Alemão com a cobertura que a Fox News deu sobre a guerra do Iraque. Então, é uma grande mercadoria, tanto que na véspera de transmitir o dia inteiro aquele horror, a Globo anunciou o noticiário do dia seguinte como Tropa de elite 3 . Há todo um mercado da violência e do controle da violência. Para o grande público, telespectadores de programas policiais, colocar as forças armadas nisso seria o ápice, mas para os estudiosos, para quem não está querendo aparecer muito, isso é uma coisa muito perigosa, muito controversa e acho que inclusive é irresponsável .

Quais as relações desta política de segurança com o projeto de cidade que se tem?


Tem tudo a ver com o projeto da cidade do Rio de Janeiro. Existe agora no Rio um conjunto de forças privadas, de negócios esportivos transnacionais, que irão ocupar a cidade. Tanto a prefeitura do Rio quanto o governo estadual estão nessa ocupação. O choque de ordem, por exemplo, é um eufemismo para uma contenção truculenta da pobreza e para as estratégias de sobrevivência da pobreza, por isso eu digo que me surpreende o governo federal ter embarcado nessa.

Que assuntos ou aspectos devem ser levados em conta na elaboração de uma política de segurança pública?


A questão é o que quer dizer segurança pública para nós. Para mim, é transporte coletivo não monopolizado, de boa qualidade, escola pública de boa qualidade – o Rio é o penúltimo estado em termos de educação pública. Segurança é decorrência de um conjunto de políticas públicas; é assim que nos sentimos seguros: quando temos políticas urbanas, políticas de iluminação, de cultura, de lazer. Numa cidade que precisa de tanta polícia, de exército, marinha, aeronáutica, cercando um quilombo, ou um Canudos ou uma favela, alguma coisa está fora da ordem, como diz o Caetano Veloso. E essa cena que estamos vendo é recorrente na história do Brasil. Na República, Canudos foi a chacina fundacional: naquele tempo todo mundo achava que aqueles eram os monstros, os demônios que ameaçavam a República. Tem aquela frasesinha de Euclides da Cunha [no livro Os Sertões, que retrata a guerra de Canudos] que dizia que, no final, “eram apenas quatro: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados”. Estamos assistindo a isso: primeiro houve aquela coisa heróica da tomada do morro e agora já começamos a assistir situações de morador que foi roubado: aquilo que já conhecemos há tantos anos, que é a entrada violenta da polícia numa comunidade pobre, com roubo e pilhagem – que são os crimes de guerra.

Se formos a uma cidade tranqüila percebemos que tem pouca polícia. Em Buenos Aires, por exemplo, você entra num restaurante, aí aparece um velho policial gordo e pergunta: ‘boa tarde, está tudo bem?’ Essa é a figura daquilo que um dia já se sonhou no Rio de Janeiro: ter um policial ligado ao bairro. Mas essa estratégia bélica de ocupação, as próprias UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora] não passam de uma ocupação militar das favelas. Mesmo que a capitã seja doce, seja uma mulher, seja ótima, uma gracinha – como ela deve ser mesmo, eu não a conheço -, é de apenas uma comunidade, que está aí na peça publicitária, que foi vendida como a grande solução mágica. Mas continua a matança no Rio pela polícia. e então, a UPP não é um programa alternativo, é mais uma estratégia. Há dois especialistas israelenses que estão dizendo que o que ocorre aqui é igual ao que ocorre em Israel. Toda essa ideia de reconquista do território, que vários sociólogos estão aplaudindo, é coisa do paradigma bélico, as pessoas estão incorporando já o vocabulário da guerra para a segurança pública. Isso é um fiasco para mim que acredito que segurança é uma outra coisa, mas há quem goste de ver tanque virado para a favela, a favela ocupada pela polícia, os moradores pedindo licença para tocar uma música – músicas que a policia não gosta, como o funk, não pode tocar.

Do ponto de vista da guerra, então, é um sucesso?

Não é um sucesso, é um sucesso de vendas,  tanto para a mídia quanto para os armamentos que estão sendo anunciados . Eu não vi ainda o sucesso do outro ponto de vista. Não tinha não sei quantos homens armados? Eu vi uns ferrados correndo armados, mas cadê o sucesso da operação? Porque a finalidade explícita era o sucesso da operação, mas a implícita é vender a guerra, a ode à polícia. O subsecretário da polícia civil estava vestido como os soldados se vestiam no Iraque. A Folha de São Paulo está dizendo que a Globo, que foi sócia na empreitada, já tinha sido avisada antes. Polícia civil é polícia investigativa, mas o cara está lá vestido de rambo, com colete, todo orgulhoso. E do lado de lá está Canudos. É aquilo que conhecemos há 500 anos, desde a colonização: só muda o crime, mas a estética é a mesma.

O discurso de uma parte da população é de recrudescimento da violência policial. Percebemos, nesse contexto, a glamourização das forças policiais, como do Bope, por exemplo. Como essa percepção é construída?

È construída ao longo dos tempos. A Rede Globo é uma grande construtora de subjetividades brasileiras. Mas acho que a sociologia fluminense também contribuiu muito para isso. Basta olhar as entrevistas dos sociólogos: só falta estarem de colete blindado aplaudindo. Agora a verdade das coisas começa a aparecer porque não prenderam tanta gente. Será que não tinha tanta gente assim? Não apareceu cocaína, só apareceu maconha; os fuzis que aparecem são meio velhos, não são tantos quanto diziam, as pessoas não aparecem. O que aconteceu ali? Eu não sei responder agora, estou procurando saber – por isso eu não gosto de falar no fogo dos acontecimentos porque o importante é reunir elementos para pensar profundamente. Por trás do Tropa de Elite 1 e 2, há aquele discursinho politicamente correto, o novo inimigo, mas no paradigma bélico o importante é ter sempre um inimigo. Embora as intenções do livro e do filme sejam boas, o sucesso dele mesmo são as cenas de tortura, que é quando o público vai ao delírio, e por isso é perverso porque é muito enganador. E o filme foi construído por um sociólogo e por um ex-Bope. O Zaffaroni, que é um dos maiores pensadores sobre esta questão na América Latina, diz o seguinte: para haver o genocídio sempre precisa ter um discurso legitimante. Na minha tese de doutorado O Medo na cidade do Rio de Janeiro, eu fiz um trabalho sobre o medo no Rio no século XIX e no século XX. Lá eu digo que o medo acua as pessoas. Na saída da ditadura, por exemplo, nós tínhamos uma resistência muito maior à truculência policial, e hoje ela é considerada heróica, é aplaudida. E se formos olhar tecnicamente e militarmente, há um uso desproporcional de força, uma porção de erros táticos e técnicos e aí temos que analisar com calma.

O que vem aparecendo na mídia com relação a esta situação do Rio é que a população do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro está aprovando as ações policiais. Isso tem acontecido de fato?


Até hoje eu não vi nenhum morador aplaudindo, eu só vejo a mídia dizendo isso. Você viu? Porque uma cartinha, até eu mando também dizendo isso. Eu duvido que os moradores do Alemão estejam gostando dos últimos dias.

Eu estudo esta questão de drogas há 20 anos, a polícia do Rio tem matado tanto e o mercado de drogas continua. No capitalismo, alguém irá tomar esse espaço e a pergunta é: quem? A partir da leitura da matéria da Folha de São Paulo de hoje (2/12), você começa a desconfiar de que já estão tomando. E agora colocamos as forças armadas também nisso, naquilo que o Darcy Ribeiro chamava de o moinho de gastar gente: vão botar o recruta e daqui a dez anos, o menino estará como? O Brasil, que está na guerra contra as drogas, é um dos poucos países do mundo onde o consumo de drogas aumentou. Isso não aconteceu com Portugal e Espanha, por exemplo, que descriminalizaram as drogas. Nós estamos pegando aqui a rapa das mercadorias da era Bush. No México, as forças armadas estão tomando uma corrida, porque eles conseguem fazer igual aos Estados Unidos fizeram no Afeganistão: ocupam, matam para caramba e aí? Como se faz para ficar? Ou as tropas são corrompidas ou é preciso ficar matando, matando e matando. Por exemplo, no Afeganistão, sob o regime talibã, a produção de drogas diminuiu, mas aumentou com a ocupação americana, o outro lugar foi a Colômbia, país também ocupado pelos Estados Unidos e onde a produção de drogas também aumentou. E o modelito aqui do Rio é todo copiado de lá, e tudo aparece assim como se fosse uma grande novidade.  Aí vem um monte de sociólogo, faz um quadrinho, mostra que está tudo integrado e tal. Mas apreensão de droga é agulha no palheiro. Talvez eles consigam mesmo destruir uma das chamadas facções, mas e as outras? Quem vai pegar? É um aprofundamento de uma linha burra e derrotada. Mas deve ter algum lucro. A guerra contra as drogas é fracassada em todos os objetivos que ela propôs – produção, comercialização, consumo, violência e corrupção policial – mas ela continua regendo há mais de 40 anos no mundo e no Brasil. Então, uma política com tantos fracassos deve ter alguma coisa por trás dela que é um sucesso. Na minha modesta opinião, é porque ela alimenta a indústria da guerra e do controle do crime.

E qual a relação do tráfico de drogas com o modo de produção capitalista? O capitalismo pode prescindir deste negócio neste momento?


O capitalismo e o mundo contemporâneo não podem prescindir das drogas de uma forma geral. Está todo mundo no Lexotan, no Prozac, no Valium [medicamentos], no wisky ou no quer que seja. Mas algumas substâncias foram demonizadas, estas não podem ser consumidas. E estas são as que causaram a guerra. Mas na história do capitalismo já houve uma guerra a favor do ópio, que foi da Inglaterra contra a China. Todas as civilizações sempre t suas substâncias para ajudar a transcender ou por rituais religiosos ou mesmo cotidianos. Os romanos tomavam vinho, os amazônicos tomam auaska, os rastafari maconha e por aí vai. E o ocidente cheira pó, toma calmante e estas drogas. Só que o mercado ilícito acaba ficando para os pobres, porque os nossos jovens [de classe média e ricos] vão trabalhar em bancos, em produtoras, em jornais, mas a mão de obra pobre é que vai se encarregar da parte barbarizada do mercado. Mas no capitalismo, mercado é mercado. A Folha de S. Paulo já diz hoje que tem milícia dentro do Alemão. Mas isso é tão obvio que iria acontecer! A cobertura Fox News da Globo não me convenceu, mas criou toda esta pedida de truculência. A capa da Veja era o Capitão Nascimento como herói nacional.  Você me perguntou sobre a adesão das classes populares a esta truculência e eu acho que tudo isso contribui para esta adesão. Mas também não ouviremos em lugar nenhum as pessoas que não aderem.

A senhora comentou sobre sua tese O medo na cidade do Rio de Janeiro, onde mostra como a criminalização da pobreza sempre foi um elemento da política de segurança da cidade. A criminalização do traficante hoje atua também como elemento de criminalização da favela?

A criminalização da pobreza sempre aconteceu. O Nilo Batista diz que o criminal é um fetiche para esconder a conflitividade social. Ao observarmos os crimes no século XIX, percebemos que eram todos crimes de escravo. O discurso é sempre o mesmo. Eu tenho isso no livro porque pesquisei os arquivos do século XIX e lá dizia: “magotes de negros armados pelos morros”. É igualzinho. O que muda é só o discurso, ou é porque é capoeira, ou quilombola, ou é sambista, ou funkeiro, ou é porque é traficante, entre aspas. Eu tive um aluno delegado [Orlando Zaccone] que escreveu um livro chamado Acionistas do nada. Quando dei a aula sobre drogas, ele falou que quando era delegado na Barra da Tijuca fez pouquíssimos registros de tráfico. Um tempo depois ele foi transferido para Jacarepaguá, onde tem muita favela, e aí ele viu que tinha dezenas de autuações por tráfico a cada dia em Jacarepaguá. Agora, me conte uma coisa: será que é porque não tem tráfico na Barra da Tijuca? Ou será que é porque a venda varejista de drogas na Barra é feita de uma maneira diferente? Eu não estou dizendo que quero fazer uma guerra contra a Barra da Tijuca, o que estou dizendo é que o tráfico está em todos os lugares, mas o tráfico do varejo pobre virou o inimigo nacional. Você passa nas ruas e os pobres também, os porteiros, estão todos dizendo: ‘é uma raça ruim, tem que matar’. Isso é fruto de uma educação. Ao ler as cartas dos leitores do Globo, se percebe qual é esse projeto educacional. Então, eu acho que andamos para trás, na saída da ditadura tínhamos muito mais resistência. Hoje eu vejo as pessoas de esquerda, inclusive, falando ainda sem nem ter conseguido avaliar o que está acontecendo. Eu ainda não estou entendendo direito o que está acontecendo, a grande vitória militar eu não vi.

A senhora disse que ao longo da história sempre houve um personagem criminalizado, o capoeira, o sambista, por exemplo. Mas o que determinou a construção do sujeito conhecido como traficante, alvo desta criminalização violenta por parte da polícia, mas também gerador de violência, o que, inclusive, serve para justificar também a truculência dos aparatos de repressão do estado?


Primeiro, eu acho que não se pode generalizar a categoria de traficante, assim também como eu acho que não se pode generalizar falando que a polícia é assim ou assado. Eu não conheço esses caras sobre os quais estão dizendo que são violentos, você sabe se eles realmente são? E eu não chamaria de traficantes, eu os chamo de comerciantes varejistas.

Mas existe uma diferença deste sujeito de agora para os outros sujeitos que a senhora comentou?


Eles eram demonizados da mesma forma. Existe essa coisa: o traficante é mal. Mas, gente, tem o indolador, de 14 anos, que é o menino que faz a embalagem, a mãe é passadeira, está fora o dia todo e o menino embala a droga. Nem todo mundo que trabalha nesse negócio barbarizado é bárbaro, mas ele vai se barbarizando por causa da guerra. Outro dia eu vi um filme lindo americano sobre um militar que o filho é morto na volta da guerra do Iraque. No início você pensa que ele é assassinado porque testemunhou horrores no Iraque. Mas no final você descobre que o menino virou um monstro, eu odeio usar esta palavra, uso entre aspas: o menino começa a gostar de matar. E então, a guerra faz isso. Eu acho que daqui a pouco nós vamos começar a ter esses psicopatas iguais aos psicopatas americanos, que só tem nos Estados Unidos, que é o cara que sai atirando em todo mundo, que são pessoas com transtornos decorrentes da guerra. O mercado varejista do capitalismo ilícito é bárbaro, o mercado bom ficará para os meus filhos, um é designer, o outro é advogado, o outro trabalha em banco, mas o filho da minha passadeira tem que se conformae com a bolsinha família, o salariozinho ruim, ficar direitinho, não se comportar mal com a polícia. Mas, mesmo assim, de vez em quando ele irá apanhar na cara, levar um tiro, alguém vai botar uma arma e um flagrante na mão dele. As pessoas vão se barbarizando: tem também uma educação para isso, que é a educação do esculacho, o menino pobre, negro, adolescente no Rio de Janeiro pode ser morto a qualquer momento e ser chamado de traficante.

E a perspectiva é de que esta política de segurança pública continue?


O discurso federal assustadoramente está sendo este, eu não esperava isso. Me considero uma pessoa triste porque pensava que isso teria um rumo diferente, mas eu vejo que é este lixo da era Bush que está sendo vendido para nós como tecnologia de segurança pública, armas, sentimentos de ódio, de truculência. Acho que estamos muito mal. A maneira de furar também é a de mídias como vocês, que têm uma capacidade de vazar informações e criar um público qualificado, porque a de massa fez uma educação sinistra nos últimos tempos.

FONTE: http://www.brasildefato.com.br/node/5258

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Freixo: segurança pública reforça criminalização da pobreza





Marcela Rocha
Em entrevista a Terra Magazine, o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol-RJ), conhecido pelo combate às milícias, afirma que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fez “a escolha política” de ir “à fonte do financiamento do tráfico”. Segundo ele, a ação da polícia carioca nas favelas reforça “a criminalização da pobreza” e não enfrenta o crime organizado. Ele será enfrentado, diz Freixo, “onde há o lucro (com a ilegalidade), que não é na favela”.
- A favela é a mão de obra barata. É a barbárie – diz o deputado, elencando a Baia da Guanabara e o Porto como locais onde há o tráfico de armas e onde lucra o crime organizado.
Crítico da política de segurança pública do Rio, Freixo afirma que as reclamações dos moradores dos morros questionam a presença da polícia, comparando à ausência de políticas sociais, postos de saúde e escolas. Para o deputado, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) visam atender as necessidades de uma cidade que será Olímpica em 2016:
- As UPPs representam um projeto de cidade e não de segurança pública. O mapa das UPPs é muito revelador: é o corredor da Zona Sul, os arredores do Maracanã, a zona portuária e Jacarepaguá, região de grande investimento imobiliário. Então, são áreas de muito interesses para o investidor privado. (…) A retomada é militar para permitir um projeto de cidade, que é a cidade Olímpica de 2016. Para toda cidade Olímpica tem cidades não-Olímpicas ao redor – afirma.
Freixo foi presidente da CPI das Milícias, que investiga a ligação de parlamentares com grupos paramilitares. Por conta disto, o deputado chegou a ser ameaçado de morte. Leia abaixo a íntegra da entrevista:
Terra Magazine – O senhor é conhecido pelo combate às milícias. Em alguma medida, esses ataques podem interferir no comportamento delas?
Marcelo Freixo – Esses ataques não tem nada a ver com milícias, são reações às UPPs, que não atingiram as milícias em nada. Não há nenhuma área atingida pelas milícias que tenham sido ocupadas pelas UPPs. Pelo contrário.
Sobre esses ataques…
Esses ataques são do varejo da droga, que é muito menos organizado do que se imagina. Representam o crime da lógica da barbárie, da violência. Não são pessoas que têm referência com o crime organizado, porque a organização não faz parte de sua cultura de vida. É a barbárie pela barbárie. Então, os ataques não vêm do crime organizado, que deve ser enfrentado de uma outra forma.
Que forma?
Se quiser enfrentar o crime organizado tem que ir para a Baia da Guanabara que é por onde as armas entram. Aí, sim. Ali tem a operação financeira do crime organizado para o tráfico de armas. Isso não se enfrenta no Rio de Janeiro.
O senhor afirma que se trataram de atos bárbaros, sem uma organização. Mas esses ataques estavam sendo comandados pelo Comando Vermelho e pelo Amigo dos Amigos.
São facções da barbárie. É o crime organizado dentro das cadeias. São grupos que só são organizados de dentro das cadeias. Muito mais dentro do que fora. O crime organizado é onde tem dinheiro e poder, que não é o caso das favelas, onde fica a pobreza e a violência. A tradicional política de segurança do Rio, perpetuada há 11 anos, enfrenta as favelas com uma ação letal. Em 2007, o mesmo governo (Sérgio) Cabral entrou no Complexo do Alemão, matou 19 e saiu. Como está o Complexo do Alemão hoje? Igual. Esse tipo de ação é muito ineficaz. Se é para enfrentar o crime organizado, tem que ser onde ele lucra, que não é na favela. A favela é a mão de obra barata, e é a barbárie. É preciso ir à fonte do financiamento e aonde passam as armas. Essa é a escolha política que até hoje o governo Lula não fez.
Como o senhor avalia a implementação das UPPs?
As UPPs representam um projeto de cidade e não de segurança pública. O mapa das UPPs é muito revelador: é o corredor da Zona Sul, os arredores do Maracanã, a zona portuária e Jacarepaguá, região de grande investimento imobiliário. Então, são áreas de muito interesses para o investidor privado. O Estado, portanto, retoma – militarmente – este território. A retomada é militar para permitir um projeto de cidade, que é a cidade Olímpica de 2016. Para toda cidade Olímpica tem cidades não-Olímpicas ao redor.

No morro Dona Marta, por exemplo, moradores reclamaram bastante da truculência policial durante a ocupação das UPPs.

Em todas as áreas de UPPs existe muita reclamação, e hoje em dia isso vem aumentando. A maioria das queixas são causadas pela agressividade policial, não necessariamente agressão física, mas pela atitude, ou abuso de autoridade. Outra reclamação recorrente é que só polícia chegou a esses morros.
Como assim?
Só chegou polícia e não investimentos sociais. E é claro que não só de polícia a favela precisa. Uma coisa é enfrentar a barbárie, outra coisa é o fator que mantém aquela favela ali. As pessoas precisam de direitos. Não adianta levar a polícia e não levar a escola, o posto de saúde, o saneamento. Isso vai gerando um desgaste para a própria polícia também.
Dentro desse cenário que o senhor chama de “barbárie”, e somando a ele esses ataques recentes, o senhor acredita que fica de ônus ao morador da favela?
Esses momentos reforçam o processo de criminalização da pobreza no Rio, o que é muito perigoso. Hoje, todas as operações policiais no Rio acontecem nas favelas. Todas. Não há nenhuma na Baia da Guanabara, nem no Porto, que é por onde entram as armas e onde funciona – verdadeiramente – o crime organizado. Então, reforça-se esse processo de criminalização das áreas pobres. 


FONTE:
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4811494-EI6578,00-Freixo%20seguranca%20publica%20reforca%20criminalizacao%20da%20pobreza.html

domingo, 31 de outubro de 2010

Entrevista com o neurocientista Sidarta Ribeiro falando sobre a legalização da maconha, Revista Poder/agosto 2010

Segue o link para baixar a revista Poder, de agosto de 2010, com a entrevista do neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, falando sobre a legalização da maconha. A entrevista é de Flavia Galembeck

Download

sábado, 16 de outubro de 2010

Entrevista com Maria Lúcia Karam, pelo Coletivo DAR

16/10/2010
por revistaovies
“Não são as drogas que causam violência, mas sim a ilegalidade imposta ao mercado”
Ex-defensora pública e juíza aposentada no Rio de Janeiro, Maria Lúcia Karam é um dos principais expoentes teóricos do antiproibicionismo brasileiro. Libertária e ativista do abolicionismo penal, Karam inspirou o nome do nosso coletivo (Desentorpecendo a Razão) – agora completando um ano – com sua carcterização de que somente uma razão entorpecida pode conviver com o proibicionismo que combatemos.
Em entrevista exclusiva para o DAR, ela abordou um pouco de suas convicções e opiniões acerca dos efeitos do proibicionismo em geral e de nossa atual lei, do abolicionismo penal, da questão das drogas nas eleições 2010 e também sobre o posicionamento de esquerda e direita neste debate. “É preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas, de modo a efetivamente afastar os riscos, os danos e os enganos do proibicionismo, que provoca violência, que provoca maiores riscos e danos à saúde, que cerceia a liberdade, que impede a regulamentação e um controle racional daquelas atividades econômicas”, sintetiza Karam, uma mente desentorpecida.
DAR – Maria Lúcia, nos inspiramos em suas formulações para nomear nosso coletivo e também para pautar muitas de nossas reflexões. Gostaria que comentasse rapidamente em que consiste a “razão entorpecida” que pauta nossas atuais políticas de drogas, e quais os impactos principais dela.
Maria Lúcia Karam – Costumo dizer que somente uma razão entorpecida sustenta a globalizada política de drogas porque um mínimo de racionalidade demonstra não só o fracasso de seus declarados objetivos, como também – e mais importante – os graves riscos e danos decorrentes da proibição.Após um século de proibição, agravada nos últimos quarenta anos pela adoção da política de “guerra às drogas”, a pretendida erradicação das drogas tornadas ilícitas não aconteceu e nem mesmo a redução de sua circulação. Ao contrário, essas substâncias proibidas foram se tornando mais baratas, mais potentes e muito mais facilmente acessíveis.
Inspiradas pelo paradigma bélico, medidas repressivas impostas pelas convenções da ONU e pelas leis internas criminalizadoras das condutas de produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas se caracterizam por uma sistemática violação de clássicos princípios garantidores de direitos fundamentais, provocando um vertiginoso aumento no número de pessoas presas em todo o mundo e ameaçando os próprios fundamentos da democracia.A proibição conduz a uma total ausência de controle sobre o mercado tornado ilegal, entregue a agentes que, atuando na clandestinidade, não estão sujeitos a quaisquer limitações reguladoras de suas atividades.
A proibição provoca maiores riscos e danos à saúde: impede a fiscalização da qualidade das substâncias comercializadas; sugere o consumo descuidado e não higiênico; dificulta a busca de assistência; constrói preconceitos desinformadores e obstáculos às ações sanitárias; cria a atração do proibido, acabando por estimular o consumo especialmente por parte de adolescentes.
A proibição causa violência. Não são as drogas que causam violência, mas sim a ilegalidade imposta ao mercado.
A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas. É a ilegalidade que cria a violência. A produção e o comércio de drogas só se fazem acompanhar de armas e de violência quando se desenvolvem em um mercado ilegal. A violência não provém apenas dos enfrentamentos com as forças policiais, da impossibilidade de resolução legal dos conflitos, ou do estímulo à circulação de armas. Além disso, há a diferenciação, o estigma, a demonização, a hostilidade, a exclusão, derivados da própria idéia de crime, a sempre gerar violência, seja da parte de agentes policiais, seja da parte daqueles a quem é atribuído o papel do “criminoso”, ou, pior, do “inimigo”.
A realidade e a história demonstram que o mercado das drogas não desaparecerá. As pessoas continuarão a usar substâncias psicoativas, como o fazem desde as origens da história da humanidade, nada importando a proibição. Em um ambiente de legalidade, as pessoas estarão muito mais protegidas, tendo maiores possibilidades de usar tais substâncias de forma menos arriscada e mais saudável.
DAR- Como é vista a questão das drogas dentro do sistema judiciário e do meio jurídico? Existem mais vozes dissonantes? Em seu texto “A lei 11.343 e os repetidos danos do proibicionismo” você aponta incoerências e inclusive inconstitucionalidades na nossa atual lei de drogas, como é possível que não haja contestação jurídica desta lei?
MLK – A maioria dos juízes – e dos profissionais do direito em geral – costuma interpretar e aplicar as leis de forma burocrática, ignorando a supremacia das normas garantidoras de direitos fundamentais, inscritas nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas, ignorando o fato de que uma lei só é válida – e, portanto, só é aplicável – quando se harmoniza com essas normas garantidoras de direitos fundamentais. Por isso, dispositivos claramente inconstitucionais presentes na Lei 11.343 ainda subsistem e são pouco contestados. Isso, evidentemente, acontece não só no Brasil.
No entanto, alguns avanços podem ser constatados. No Brasil, vale lembrar o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferido na Apelação Criminal 01113563.3/0-0000-000, relator o juiz José Henrique Rodrigues Torres, em que foi declarada a inconstitucionalidade da regra criminalizadora da posse de drogas para uso pessoal.
DAR- No caso da Argentina houve uma decisão jurídica da Suprema Corte que na prática descriminalizou o consumo de drogas. Você acredita que existe possibilidade do STF se posicionar de maneira a questionar o proibicionismo?
MLK – A importante decisão da Suprema Corte argentina de 25 de agosto de 2009, em que declarada a inconstitucionalidade da criminalização da posse de drogas para uso pessoal, é um exemplo dos avanços antes mencionados.
Confio que o STF também exerça a função maior de todos os juízes que é a de garantir a supremacia das normas inscritas nas declarações internacionais de direitos e na Constituição, de garantir a efetividade dos direitos fundamentais de cada indivíduo. Assim exercendo corretamente sua função, o STF certamente deverá também proclamar a manifesta inconstitucionalidade da criminalização da posse de drogas para uso pessoal.
DAR – Qual a importância de debater a questão das drogas relacionando-a à criminalização da pobreza, dos movimentos sociais e perante a constatação da seletividade do sistema jurídico?
MLK – A “guerra às drogas” não se dirige propriamente contra as drogas. Como qualquer outra guerra, dirige-se sim contra pessoas – nesse caso, os produtores, comerciantes e consumidores das drogas tornadas ilícitas. Como acontece com qualquer intervenção do sistema penal, os mais atingidos pela repressão são os mais vulneráveis econômica e socialmente, os desprovidos de riquezas, os desprovidos de poder.
No Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como os “traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. Enfrentam a polícia nos confrontos regulares ou irregulares; enfrentam os delatores; enfrentam os concorrentes de seu negócio. Devem se mostrar corajosos; precisam assegurar seus lucros efêmeros, seus pequenos poderes, suas vidas. Não vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras.
Nos EUA, pesquisas apontam que, embora somente 13,5% de todos os usuários e “traficantes” de drogas naquele país sejam negros, 37% dos capturados por violação a leis de drogas são negros; 60% em prisões estaduais por crimes relacionados a drogas são negros; 81% dos acusados por violações a leis federais relativas a drogas são negros. Os EUA encarceram 1.009 pessoas por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens brancos, são 948 por cem mil habitantes adultos. Se considerados os homens negros, são 6.667 por cem mil habitantes. Sob o regime mais racista da história moderna, em 1993 – sob o apartheid na África do Sul – a proporção era de 851 homens negros encarcerados por cem mil habitantes. Como ressalta Jack A. Cole, diretor da Law Enforcement Against Prohibition-LEAP – organização internacional que reúne policiais, juízes, promotores, agentes penitenciários e da qual orgulhosamente faço parte – é o racismo que conduz a “guerra às drogas” nos EUA.
Na Europa, a mesma desproporção se manifesta em relação aos imigrantes vindos de países pobres.
Quem deseja construir um mundo melhor, quem deseja construir sociedades mais iguais, mais justas, mais livres, mais solidárias, seguramente precisa lutar pelo fim da “guerra às drogas”, precisa lutar pela legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas.
DAR – É possível se incluir um nicho marginalizado na sociedade sem que este torne-se mais um mecanismo exploratório da mídia e do consumo?
MLK – Sociedades não deveriam ter “nichos marginalizados”. Todos devem estar incluídos nas sociedades. Manipulações e explorações da mídia e dos incentivos a um consumismo descontrolado não são algo preocupante apenas quando se trata de integrar “nichos marginalizados”, sendo sim algo que deve ser permanentemente enfrentado.
DAR- Como avalia o posicionamento dos presidenciáveis frente à questão das drogas? Além dos presidenciáveis como vê o silêncio de figuras públicas vinculadas a partidos?
MLK – Acho lamentável o posicionamento que todos os presidenciáveis e a maioria das figuras públicas brasileiras vinculadas a partidos têm externado em relação às drogas. Repetem o enganoso discurso proibicionista. Ratificam e/ou compactuam com a globalizada política proibicionista fundada na inútil, perigosa, violenta, danosa e dolorosa “guerra às drogas”.Por outro lado, o silêncio frequentemente reflete uma auto-censura, uma postura de quem receia contrariar pensamentos eventualmente majoritários, de quem pauta sua atuação política por momentâneas pesquisas de opinião.
DAR – Muitas pessoas defendem uma saída no sentido de somente descriminalizar ou regulamentar a posse de drogas para consumo próprio, mantendo o tráfico sob forte repressão. Como avalia essa proposição? Seria isso o que é possível no momento ou uma saída para somente um setor da sociedade?
MLK – A descriminalização da posse para uso pessoal das drogas ilícitas é um imperativo derivado da necessária observância dos princípios garantidores dos direitos fundamentais inscritos nas declarações internacionais de direitos e nas constituições democráticas. A posse de drogas para uso pessoal é uma conduta que não atinge concretamente nenhum direito de terceiros. É uma conduta privada que não pode sofrer qualquer intervenção do Estado. Em uma democracia, a liberdade do indivíduo só pode sofrer restrições quando sua conduta atinja direta e concretamente direitos de terceiros.
Mas essa imperativa descriminalização não é suficiente. Praticamente nada mudará, a não ser que a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas possam se desenvolver em um ambiente de legalidade.É preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas, de modo a efetivamente afastar os riscos, os danos e os enganos do proibicionismo, que provoca violência, que provoca maiores riscos e danos à saúde, que cerceia a liberdade, que impede a regulamentação e um controle racional daquelas atividades econômicas.
Não se pode parcial e egoisticamente defender apenas os direitos de consumidores de drogas e ignorar ou até mesmo compactuar com as gravíssimas violações de direitos das maiores vítimas da “guerra às drogas” – no Brasil, repita-se, os muitos meninos que negociam e trabalham no árduo mercado tornado ilegal.
Tampouco se pode pensar no paradigma de redução de riscos e danos apenas em um sentido que o vincula unicamente a questões concernentes à saúde. Aliás, o desenvolvimento de programas terapêuticos de redução dos riscos e danos relacionados às drogas tornadas ilícitas no interior de um ordenamento proibicionista, que maximiza esses riscos e danos, torna-se algo irracional e insustentável, ou, na melhor das hipóteses, uma política que se satisfaz com o enfrentamento apenas de alguns riscos e danos menos graves, deixando de lado os riscos e danos mais graves, inclusive os diretamente relacionados e agravantes dos mais limitados riscos e danos enfrentados.
Não se pode parcial e maniqueistamente defender apenas a legalização de uma ou outra droga apresentada como “boa” ou “inofensiva”, como fazem defensores da maconha ou da folha de coca, que, reproduzindo a mesma artificial distinção que sustenta a enganosa e nociva divisão das drogas em lícitas e ilícitas, pretendem se apresentar como os “bons”, se diferenciando dos “maus” produtores, comerciantes e consumidores de drogas ditas “pesadas”.
Não se pode pretender reduzir riscos e danos relacionados às drogas e não se incomodar com a nocividade do proibicionismo.
Somente a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas porá fim à enorme parcela de violência provocada pela proibição. Somente a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas permitirá a efetiva regulação e o controle do mercado, de forma a verdadeiramente proteger a saúde. Somente a legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas permitirá a economia dos recursos atualmente desperdiçados na danosa “guerra às drogas” e o aumento da arrecadação de tributos, assim permitindo a utilização desses novos recursos em investimentos socialmente proveitosos.
DAR – E como você encara a participação de setores conservadores neste debate, cujo exemplo mais marcante é o ex-presidente FHC?
MLK – O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que para se apresentar como um reformador nesse tema deveria, antes de tudo, fazer uma profunda autocrítica sobre a política desenvolvida em seu governo – basta lembrar que foi em seu governo que foi criada a militarizada SENAD –, na realidade, avançou muito pouco.
O relatório da Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia, da qual é um dos líderes, afirma o fracasso e aponta danos da “guerra às drogas”. No entanto, paradoxalmente, apóia ações repressivas, inclusive com a intervenção das Forças Armadas, propondo apenas a mera adoção de programas de saúde fundados no paradigma de redução de riscos e danos e a mera descriminalização da posse para uso pessoal tão somente da maconha.
Setores ditos “conservadores” que verdadeiramente se posicionem no sentido da legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas, naturalmente, devem ser muito bem-vindos. Todas as forças que se disponham a lutar para obter essa conquista fundamental para o bem-estar da humanidade, certamente, devem ser recebidas com entusiasmo. Posicionando-se verdadeiramente pela legalização da produção, do comércio e do consumo de todas as drogas poderão até ser “conservadores” em alguns temas, mas estarão demonstrando um compromisso com a liberdade e com o bem-estar das pessoas que deve ser saudado.
DAR – O seu nome é invariavelmente ligado aos debates sobre o abolicionismo penal. Poderia nos explicar como acredita que devem ser pautados nossos conflitos sociais para além do direito penal? Como isso se daria concretamente em um ambiente capitalista?
MLK – Uma agenda política voltada para o aprofundamento da democracia, para a construção de um mundo melhor, para a construção de sociedades mais iguais, mais justas, mais livres, mais solidárias, onde os direitos fundamentais de todos os indivíduos sejam efetivamente respeitados, há de ter o fim do poder punitivo e a conseqüente abolição do sistema penal como um de seus principais itens.
A luta pela abolição do sistema penal é uma luta pela liberdade; uma luta contra um sistema que estigmatiza, discrimina, produz violência e causa dores; uma luta para pôr fim a desigualdades; uma luta para reafirmar a dignidade inerente a cada um dos seres humanos, assim devendo ser parte inseparável da busca de uma reorganização das sociedades que, superando a violência, as opressões, explorações, desigualdades e misérias provocadas quer pelo capitalismo, quer pelo que se convencionou chamar de socialismo real, possa lançar as bases de um novo patamar de convivência entre as pessoas.
A força ideológica da enganosa publicidade do sistema penal cria a falsa crença que faz com que o controle social, fundado na intervenção do sistema penal, apareça como a única forma de enfrentamento de situações negativas ou condutas conflituosas. Na realidade, porém, as leis penais não protegem nada nem ninguém; não evitam a realização das condutas que por elas criminalizadas são etiquetadas como crimes. Servem apenas para assegurar a atuação do enganoso, violento, danoso e doloroso poder punitivo.
A intervenção do sistema penal, além de provocar danos e dores, é sempre inútil, é sempre tardia, chegando sempre somente depois que o evento indesejável já ocorreu. Essa inútil, tardia, violenta, danosa e dolorosa intervenção do sistema penal deve ser substituída por mecanismos formais e informais de controle (exercido por organismos como a família, a escola, as igrejas, os clubes, as associações, sistemas de saúde e assistência social, leis e aparatos judiciários civis e administrativos) que possam efetivamente regular a vida em comum e evitar ao máximo a produção de situações negativas ou condutas conflituosas no convívio entre as pessoas.
Naturalmente, um convívio mais saudável e menos produtor de conflitos passa pela garantia de respeito e bem-estar para todos os indivíduos. Energias e investimentos desperdiçados com a ilusória e nefasta segurança máxima de prisões devem ser substituídos por energias e investimentos voltados para garantir alimentação saudável, habitação confortável, escolas de boa qualidade, trabalho satisfatoriamente remunerado, lazer, cultura, enfim, dignidade para todas as pessoas.
Os danos e as dores produzidos pelo sistema penal revelam a total falta de racionalidade da idéia de punição. Qual a racionalidade de se retribuir um sofrimento causado pela conduta criminalizada com outro sofrimento provocado pela pena?
Se se pretende evitar ou, ao menos reduzir, as condutas negativas, os acontecimentos desagradáveis e causadores de sofrimentos, por que insistir na produção de mais sofrimento com a imposição da pena? O sistema penal não alivia as dores de quem sofre perdas causadas por condutas danosas e violentas, ou mesmo cruéis, praticadas por indivíduos que eventualmente desrespeitam e agridem seus semelhantes. Ao contrário. O sistema penal manipula essas dores para viabilizar e buscar a legitimação do exercício do ainda mais violento, danoso e doloroso poder punitivo. Manipulando o sofrimento de indivíduos atingidos por seus semelhantes, incentiva o sentimento de vingança. Desejos de vingança não trazem paz de espírito. Desejos de vingança acabam sendo autodestrutivos. O sistema penal manipula sofrimentos para perpetuá-los e para criar novos sofrimentos.
O destrutivo sentimento de vingança, manipulado pelo sistema penal, deve ser trocado pelo perdão, pela compaixão, pela compreensão, abrindo espaço, nos conflitos interindividuais, para estilos compensatórios, assistenciais, conciliadores. Os bens e as riquezas produzidos nas sociedades, certamente, devem ser compartilhados. Mas, é preciso também aprender a conviver com os desconfortos nelas gerados e buscar o entendimento, a proximidade com o conflito, as soluções formadas a partir da consideração de todas as nuances do caso concreto e do respeito à dignidade de todos os envolvidos.
COLETIVO DESENTORPECENDO A RAZÃO ENTREVISTA MARIA LÚCIA KARAM, pelo viés do Coletivo Desentorpecendo a Razão

FONTE: http://oviesrevista.wordpress.com/2010/10/16/coletivo-desentorpecendo-a-razao-entrevista-maria-lucia-karam/

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Drogas: cresce o movimento antiproibicionista

ENTREVISTA / Maurício Fiore

mauricio_fiore_edit.jpg


Depois de décadas de pouco ou nulo questionamento à atual política de drogas, cujo eixo é o proibicionismo e a repressão às substâncias psicoativas ilegais, começa a se estruturar no Brasil um movimento antiproibicionista alimentado pela pesquisa científica vinda da Academia e pelo ativismo a favor dos direitos humanos originado nas organizações da sociedade civil.

Para falar sobre o tema, o Comunidade Segura entrevistou Maurício Fiore, que dedica sua carreira à pesquisa sobre consumo de drogas e sobre o debate público das substâncias psicoativas.

Fiore é cientista social e antropólogo e faz parte do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), que acaba de publicar o livro "Drogas e cultura: novas perspectivas", no qual Fiore é autor do ensaio "Prazer e risco: uma discussão a respeito dos saberes médicos sobre o uso de drogas".

Nesta entrevista, Fiore fala sobre os efeitos do estagnação do debate, da monopolização do tema por parte da área médica e explica como esta situação começa a mudar graças à geração de conhecimento tanto no âmbito das ciências naturais, como no das ciências sociais.


Existe no mundo e no Brasil um movimento antiproibicionista consolidado?

Não sei se podemos dizer que já está consolidado, mas acredito que esse movimento existe e está tomando forma em nosso país. Em países desenvolvidos já está mais sólido e tem, inclusive, um apoio financeiro maior de fundações e de grandes nomes, como o de George Soros, entre outros.


Na última conferência mundial da ONU sobre o tema, cujo objetivo era rediscutir a atual política de drogas, houve um debate muito grande...

Eu não estive presente nessa conferência, mas, pelo que sei, as pessoas se articularam para protestar contra o proibicionismo. No entanto, o movimento não teve o impacto desejado e não tem força política suficiente para causar impacto nas convenções da ONU e ainda depende muito dos próprios Estados. Creio que o movimento cresce. Ainda falta que se consolide, mas eu sou otimista.


E no Brasil?

Está crescendo, mas ainda é incipiente. Está avançando em duas frentes: a Academia, a qual pertenço, e onde estão surgindo pesquisadores que começam a se posicionar contra a proibição – o Neip faz parte disso, e as organizações da sociedade civil, como a Psicotropicus, a Marcha da Maconha e o Viva Rio.

Mas a prova de que o debate é muito incipiente no Brasil é que, por exemplo, a Marcha da Maconha, que já é bastante forte no Rio de Janeiro e em outras cidades, em São Paulo foi proibida pela terceira vez consecutiva.

Esta é uma violação da liberdade de expressão do mesmo nível que ocorria durante a ditadura militar. Inclusive, países onde existe menos liberdade e problemas de democracia, como a Rússia, permitem a marcha. Isso mostra que no Brasil nem sequer se aceita o debate. O que quero enfatizar é que, independentemente de ser proibicionista ou antiproibicionista, o mais grave é não se aceitar o debate. Criminalizar o debate é algo muito sério.


Mas nós vemos pessoas da estatura do ex-ministro do Meio Ambiente ou do atual Ministro da Cultura debatendo abertamente o tema e sem preconceitos…

O debate político brasilero neste momento é muito débil. Pegue, por exemplo os dois principais candidatos à presidência e verá que nenhum deles contribui com o debate; nenhum deles admite que o tema tem que ser discutido, pelo contrário, pedem que haja um endurecimento das leis, e só o fazem porque é uma bandeira eleitoral que funciona.

Com certeza o ex-ministro Carlos Minc fez declarações importantes durante sua gestão, e o Ministério da Cultura, por exemplo, nos apoiou na publicação do livro “Drogas e cultura: novas perspectivas”. No entanto, por causa de suas declarações, Minc foi amplamente criticado pela classe política.

Até mesmo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso - que me parece que assumiu sua posição antiproibicionista de maneira um pouco tardia, mas assumiu - teve que enfrentar o bombardeio da oposição a seu partido e de muita gente em geral. Isto é, até que termine a campanha presidencial para as eleições de outubro, não vamos ouvir propostas, não vamos ver a abertura do debate: só mais repressão.


Quais são os principais obstáculos para romper esse conhecimento viciado da sociedade, para acabar com essa cegueira pelo debate?

Cada área tem coisas que atravancam. A área da saúde está muito marcada dentro da ideia de proibicionismo e de combate às drogas. Existem vozes importantes que questionam o status quo mas são poucas e, infelizmente, a maior parte dos recursos para pesquisa se destinam a esta área, que, na maioria das vezes, não se questiona, que não constroi um tema a partir da pesquisa e já começa qualquer estudo de maneira viciada, com o objetivo de combater as drogas. Na área acadêmica, acho que vamos ter que avançar muito, as ciências sociais podem contribuir muito.


Poderia explicar?

Hoje, falar de drogas é falar contra as drogas. Não se debate, não se questiona o que é o melhor para enfrentar o problema, a lógica da guerra é o principal obstáculo e é a que está liderando o debate. O debate na televisão é muito importante também, mas três minutos é pouco para abordar um tema tão complexo.

Perguntam, por exemplo, como enfrentar o problema das drogas e temos que responder uma pergunta que já vem viciada. Não há tempo para dizer que a maior parte dos consumidores não tem problemas com a maioria das drogas, que não serve de nada tentar exterminá-las, que essa questão do usuário de crack - essa figura do desestruturado que vemos nas ruas - também é uma generalização. Claro que é uma droga complexa e implica riscos, mas nem todos os que usam crack se transformam nesse tipo de personagem.


Com o proibicionismo e a guerra às drogas, parece que o mundo deu um passo adiante e dois atrás. Em seu relatório anual sobre drogas, a ONU mostrou que na Colômbia caiu a produção de coca, no entanto, a produção aumentou no Peru. O que fazer?

O tema da guerra foi estudado por muitos sociólogos e antropólogos. Descobriram que as sociedades que se acostumam à guerra acabam se formando em função desta e que chega um ponto em que a sociedade já não sabe viver mais sem guerra.

Con as drogas acontece o mesmo: muitos funcionários da ONU e dos governos precisam que a guerra contra as drogas continue. Existem países que são muito dependentes do modelo norte-americano - como Brasil e Colômbia - e um dos pontos que precisa ser atacado para quebrar o proibicionismo é mostrar que essa política de guerra é um fracasso. A forma de demonstrar isso é utilizando a mesma linguagem: os cultivos migram assim como as consequências da guerra às drogas, entre elas, a violência social.

Qual é a principal 'arma' para um contra-ataque ao proibicionismo?

Connhecimento, informação. As grandes apreensões de drogas que vemos, por exemplo, em São Paulo, resultam na prisão de um grupo de pessoas, mas o efeito é inócuo. A polícia capturou enormes quantidades de maconha, mas as pessoas não deixaram de fumar maconha. Alguns passaram a cultivá-la, outros passaram a usar outras drogas (por exemplo, o álcool), e outros, em uma fase de experimentação, migram para o crack que é mais barato, e também mais perigoso.


Quais são os efeitos do proibicionismo?

Existem dois tipos de consequências: intelectuais e sociais. Do ponto de vista intelectual, vemos uma estagnação, não há pesquisa de verdade para chegar ao conhecimento, há um conhecimento viciado. O discurso que impera é o discurso da área de saúde, o discurso médico. Não é que seja totalmente monolítico, existem muitas controvérsias, mas se apresenta como o único autorizado e qualifica de ideologia apologética todos as demais abordagens, pelo fato de que sua preocupação é o efeito das drogas. Isso é o que mais escuto dos proibicionistas, que nós não verificamos a realidade das coisas. Eu respondo que não, que o que fazemos é justamente mostrar a realidade.

Por acaso as agências de fomento se preocupam em financiar a pesquisa de quem está desconstruindo a questão e, de alguma forma, complexificando o tema? Claro que não, preferem patrocinar quem diz 'eu tenho a solução'. E isso, sim, é produção de ideologia, no sentido negativo do termo. O trabalho de campo em redução de danos enfrenta problemas de polícia hoje.

Temos o caso de uma pesquisadora do Neip que foi processada judicialmente porque fez uma pesquisa em que distribuía material de redução de danos em festas eletrônicas onde há consumo de MDMA (ecstasy), e um dos aspectos de sua pesquisa era colocar na Internet as informações que recolhia depois de cada evento.

Ela também distribuía folhetos em que dizia coisas como 'se você vai usar ecstasy pela primeira vez, tome só a metade'. Foi processada por apologia ao crime. Claro que ela não vai ser presa por isso, o processo não chega até ali, mas a orientadora da sua pesquisa foi suspensa da universidade.


Existe preconceito contra os pesquisadores do tema de drogas?

Sim, o pesquisador de drogas é 'um drogado', 'um viciado', 'um promotor das drogas'. Não se pode fazer uma tese sobre o tema sem ser tachado de drogado ou 'o das drogas'. Quando o pesquisador apresenta este tema na Academia, é como se isso não fosse ciência, como se não fosse geração de conhecimento, é como se fosse uma desculpa para defender a legalização das drogas ou para defender um direito próprio de usar drogas. Alguns bons professores que me orientavam diziam: 'isto aqui que você está pesquisando é para se justificar'. Essa é a principal consequência intelectual do proibicionismo, que a pesquisa enfrenta todo tipo de preconceitos.

FONTE: http://comunidadesegura.com.br/pt-br/MATERIA-Cresce-o-movimento-antiproibicionista

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Entrevista exclusiva ao DAR: Pedro Gabriel Delgado fala sobre crack

O fantasma do crack tem ganhado cada vez mais peso no debate midiático e ultimamente eleitoral. Como é praxe dentro do proibicionismo, se faz muito terrorismo e se informa muito pouco. O uso é encarado já a priori como danoso, e o mal uso é considerado consequência da própria substância, não do que a envolve. Recentemente o governo federal decidiu encarar o problema, pautando-se inclusive pela inter-setorialidade. O nome do programa: “Programa de enfrentamento ao crack”. O viés é o mesmo, o fetiche da droga como bode expiatório.

Médico psiquiatra e coordenador de saúde mental do Ministério da Saúde desde 2000, Pedro Gabriel Delgado defende mudanças na atual lei de drogas, e uma abordagem mais complexa para o problema do uso problemático de crack. O DAR conversou com ele com exclusividade no final de agosto, quando da realização da II Conferência Latino-americana sobre políticas de drogas, realizada no Rio de Janeiro.
Pedro, como você situa o problema do crack hoje no Brasil?

Eu sempre tenho que dizer que é muito grave o problema, senão as pessoas acham que ao se relativizar não esta se dando a devida importância. O crack no Brasil é um problema muito grave e a principal componente desta gravidade é a vulnerabilidade das pessoas que mais recentemente, nos últimos cinco anos, começaram a consumir esse produto, que é um produto impuro, derivado de uma série de adaptações que o próprio mercado da droga faz em função até do desmantelamento da possibilidade de fazer o cloridrato de cocaína em território brasileiro, enfim, existem vários questões que são fruto do mercado da droga.

Da ilegalidade do mercado.
Da ilegalidade, inclusive, sem dúvida, porque é por conta da repressão ao mercado e a produção do cloridrato é que se produzem essas formas intermediárias. Aqui na América Latina, na Argentina, isso se passou alguns anos antes, e nos países da América do Norte, Canadá, EUA, isso começou no início dos anos 1990. Aqui no Brasil estava restrito a São Paulo, aproximadamente nos últimos cinco anos é que se estendeu a questão pro país como um todo e tomou essa dimensão grave que tem. Eu acho que é preciso se levar em conta esse componente que eu falei, da vulnerabilidade. E também nós temos discutido no Ministério da Saúde com o comitê de profissionais multidisciplinares que nos assessora, inclusive pessoas que fazem estudos qualitativos de natureza antropológica com os próprios consumidores, quais são os padrões de consumo dessa droga que tem um potencial de dependência muito grande e que traz também efeitos colaterais pra saúde geral da pessoa: efeitos pulmonares, efeito de emagrecimento ,debilitação, de queda de imunidade, de exposição ao risco de contaminação com hepatite C, B… A associação com o aumento da transmissão do vírus HIV não está ainda comprovada, mas como existe também uma associação com comportamentos de risco – sexo inseguro, prostituição, etc – de fato tem um conjunto de situações negativas que se associa ao consumo e caracteriza essa vulnerabilidade.

Entretanto, é importante também discutir os padrões de consumo que existem também nesse cenário desfavorável. Se tomarmos para efeito de raciocínio os artigos e as experiências dos colegas do Canadá, com um contexto que não é da mesma vulnerabilidade do Brasil, eles têm relatos de acompanhamento de pessoas que usam crack há 20 anos. De pessoas que usam crack com certo grau de estabilização há mais de 10, 15, 20 anos. Então nós também estamos investigando no Brasil que existe aquele consumidor de crack que constrói mecanismos de resiliência, de auto-defesa, e que não se deixa devastar de uma maneira assim tao dramática como se vê mesmo no cenário aí das ruas, dessas pessoas, especialmente as muito jovens, que vivem em situação de rua e que consomem a droga.

Então é importante também conhecer as formas menos danosas do consumo de uma droga tão danosa para que a política pública de saúde e as políticas sociais de uma forma geral possam minimamente se apropriar da questão e fazer intervenções que sejam mais sensíveis à situação individual, cultural e à subjetividade das pessoas implicadas, pra poder ter resultados melhores. Para nós do Ministério da Saúde é preciso qualificar, as intervenções estão sendo feitas, o governo lançou um programa agora de ampliação bastante intensa da oferta de serviços de atendimento, através dos CAPS, consultórios de rua, etc.

Mas o que você acha dessas campanhas serem colocadas publicamente como campanhas de combate ao crack? Ou seja, não é combate ao uso problemático de crack ou aos fatores que geram essa vulnerabilidade, mas o combate é à substância…

Eu tenho uma visão de que esse enfoque centrado na droga é um enfoque de baixa efetividade como mensagem. Eu acho que o enfoque tem que ser de fato na questão do protagonismo do sujeito, na questão de como desenvolver mecanismos de auto-proteção. Mensagens muito diretas, no sentido de pouco problemáticas, para uma questão que é muito complexa tendem a ser mal absorvidas. Mas há uma discussão também com as campanhas que se fazem em outros países sobre qual a mensagem mais adequada e correta. A experiência tem demonstrado que mensagens apenas do tipo de satanização da própria droga são ineficientes, podem até gerar um efeito colateral indesejável que é ampliar a curiosidade sobre a droga, a vontade de experimentá-la.

Mas por que com essa posição avançada do Ministério da Saúde o governo empreende campanhas assim? Mesmo a candidata da situação tem essa mentalidade, é para responder a alguns setores conservadores da sociedade?

Eu acho que é preciso entender também que nós não vivemos, principalmente num cenário muito tenso do debate da droga, nós não vivemos um cenário de consenso, nós vivemos num esforço de construir estratégias eficazes. Isso está longe de ser um consenso a respeito da melhor maneira de enfrentar. Então é possível sim, acho que não é tao estranhável, que mensagens sobre a droga e compreensões sobre o fenômeno da droga não sejam muito homogêneas. Não é homogêneo na sociedade brasileira, nós estamos aqui num seminário com pessoas que querem mudar essa compreensão, que criticam o proibicionismo, e mesmo assim nós não temos aqui duas visões sobre o fenômeno da droga que coincidam. Você conversará com um antropólogo que discute drogas, conversará com outro, e há visões diferentes. Então eu acho que tem sim não só visões contraditórias mas como há uma contradição no debate de uma forma geral e na questão da política. Eu vejo que isso quando muito tensionado pela situação eleitora acaba gerando afirmações… o próprio nome do plano emergencial que estamos executando por determinação do presidente, de “enfrentamento”, talvez a palavra enfrentamento não tivesse sido a mais adequada, talvez pudesse ser “plano emergencial para abordagem integral do problema da droga”. Mas isso não invalida o fato de que a linha geral do plano é uma linha geral não proibicionista, não repressora e, que eu acho muito importante enfatizar, é intersetorial. O fato de ser intersetorial é muito importante, porque ela não produz uma resposta apenas de natureza médica, ou de natureza penal.

Acho também, já que você comentou essa questão da campanha política, que claramente existem, apesar dessas nuances e das contradições, duas linhas estratégicas que são completamente diferentes: a oposição propõe clínicas especializadas, internação, sugere insistentemente que a internação involuntária é absolutamente necessária, sugere que quem consome crack não pode e não sabe, é incapaz de decidir pela adesão ao tratamento, falando isso de uma forma generalizada ao extremo, e ao mesmo tempo também faz um discurso subjacente ao qual está um proibicionismo mais evidente, nais claro, “precisamos erradicar” e tal. Ao passo que a abordagem da saúde pública que tem sido colocada, apesar de ter também componentes que como você apontou não estão tao homogêneos assim, tem claramente uma linha pela integralidade da atenção, pela inclusão social, pelo respeito à cidadania dos usuários e principalmente pela diversidade de oferta, de possibilidades terapêuticas e de intervenções sociais. Não tem uma visão de monocultura do tratamento apenas pela internação e pela medicalização. Isso é claro na distinção de discurso eleitoral. E em termos de prática nós estamos investindo na intersetorialidade de uma maneira bastante enérgica. Nós fizemos uma conferência de saúde mental que foi intersetorial, onde ficou claro como o desafio da intersetorialidade especialmente nas drogas, e no caso da saúde mental em geral, não está superado ainda, nem como debate teórico e muito menos como uma aliança entre políticas sociais diversas. Então o norte da intersetorialdiade está colocado, mas ele não tá consolidado como política intersetorial.

Só que a direção, eu acho que nessas situações complexas de política pública é muito importante ver o resultado, a efetividade, se os CAPS funcionam, se está sabendo atender, se os leitos são bons ou não são bons, nessa situação de baixa homogeneidade tem a possibilidade de se fazer uma leitura de qual é a direção, é preciso cobrar resultados sim , mas é importante também que ao se debater o tema da droga busque se identificar qual é a linha, qual é a direção, qual o norte dessa política. Ela tem problemas? Tem. A campanha que o ministério fez tem algumas mensagens não muito apropriadas? Possivelmente, mas qual a direção? Pra onde tá apontando? Por exemplo, qual a posição que a saúde pública tem no Brasil em relação à revisão da Lei de 2006? É uma posição de melhorar aqueles artigos que aumentam a penalização do tráfico pra compensar a distinção entre usuários e traficantes. Por que que tem que aumentar pra compensar senão pra responder a um anseio muito conservador de que no final das contas é preciso empatar o jogo deixando sempre a mesma pena? Como técnico do ministério da saúde eu participei desse debate no congresso, foi sempre assim, já que vamos fazer a distinção do usuário é preciso aumentar, e isso traz consequências pra saúde pública, ao se colocar a pena de cinco anos como pena mínima para o traficante e ao não se colocar critérios objetivos pra dizer quem é usuário quem é traficante você acaba penalizando aquele que é o pequeno traficante, ao não se distinguir também os graus de envolvimento com o crime organizado e aquele pequeno que faz o tráfico para o seu consumo, a lei não conseguiu perceber essa diferença que é essencial.

Eu pergunto, qual a posição que a saúde pública está tendo? É no sentido de aperfeiçoar as imperfeições de uma lei que foi um avanço. Qual a outra proposta que está colocada na mesa de debates da sociedade brasileira? Mudar a lei de 2006 pra recuperar os componentes repressivos que a lei anterior continha. Então eu acho que o Brasil está vivendo essa tensão de duas perspectivas sobre a droga, uma de que a droga não existe sem a sua relação com o sujeito e que portanto uma política de droga tem que ser uma política sobre os sujeitos envolvidos e não sobre droga, oposta à política de um proibicionismo que muitas vezes é absolutamente intransigente mas às vezes assume nuances de proibicionismo moderado como a própria professora Luciana Boiteux diz, mas proibicionismo ainda assim.

Como você acha que a mídia brasileira atua nessa questão específica do crack?

Pra falar com franqueza, eu diria que tá faltando equilíbrio na cobertura da imprensa brasileira na questão do crack e das drogas numa forma geral. O que eu chamo de equilíbrio: é preciso produzir informações que não trabalhem no sentido da comoção e do pânico. O problema é grave sim, mas é um problema que tem dimensões que são conhecidas, é preciso conhecer melhor, sem dúvida, mas não tem uma magnitude – pra uma população de 190 milhões de habitantes – não tem a dimensão que a mídia dá ao dizer que o país está tomado pela questão do crack etc etc. Então eu tenho uma visão crítica da forma como a imprensa em geral, televisão, jornais, tem tratado desse problema. Os programas que eu vejo, principalmente de TV, não são programas informativos, são destinados a construir uma ideia de impotência absoluta da sociedade diante daquele problema. E colocam também o usuário do crack praticamente como uma pessoa para a qual não há nenhuma saída, um condenado. Não é verdade isso, isso não corresponde a realidade clínica e etnográfica do consumo de crack, que é um problema grave mas não dessa forma que está sendo descrito. E a mídia ao tratar a situação dessa forma ela paralisa as intervenções que são no sentido mais da complexidade e da abrangência, e fortalece de uma forma danosa a visão da criminalização, a visão da exclusão social, a visão da abstinência a qualquer custo…

A ideia da abstinência a qualquer custo do ponto de vista da saúde pública é ruim porque ela é excludente, ela exclui as pessoas que não tem a possibilidade de iniciar a sua abordagem terapêutica pela abstinência, embora ela possa ser necessária, pode ser desejada até pelo próprio usuário. Mas se coloca como se fosse o crack alguma coisa que a única saída é a internação, que tem que ser de longa permanência, e a pessoa só depois da internação passa por um conjunto de procedimentos terapêuticos que a transformam em outra pessoa. Isso é vender ilusão pra população, porque os outros fatores da vulnerabilidade não foram abordados, essa pessoa vai voltar a viver num outro contexto, será uma outra pessoa? Tem estudos de história de vida de pessoas que consomem crack que mostram que na verdade são três gerações de pessoas vulnerabilizadas, onde o crack aparece agora, como um epi-fenômeno da questão mais básica que à exclusão e a vulnerabilidade. Então você não pode dizer que vai fazer um tratamento durante sei lá, seis meses, nove meses, e isso vai assegurar a resposta, isso vende pra sociedade a ilusão de que o problema é estritamente um problema de dependência química, de natureza médica. Ele tem um componente de natureza médica, mas não é exclusivamente de natureza médica.

Inclusive pois se não tivesse o crack teria cola, tíner, pinga…

Claro, antes do crack tinha os outros inalantes. O crack é pior, é mais danoso, mas já existia cola de sapateiro, tíner, etc, já tinha todas essas situações.

E pra encerrar, outro problema além da questão da mídia é o lobby das clínicas particulares nesse problema das internações, tem muita gente interessada economicamente nisso, o ministério tem feito algum controle sobre essas clínicas ou tem essa intenção?

O ministério tem a obrigação de fiscalizar as clínicas. Há dois tipos de clínicas, tem os hospitais psiquiátricos que trabalham com dependentes químicos usuários de drogas e tem as comunidades terapêuticas, que são associações filantrópicas, 90% das quais religiosas, que fazem parte da rede de proteção social. Nós consideramos que elas têm um papel a desempenhar na rede de proteção social, mas elas não podem ser colocadas como a solução do problema. E por outro lado nós temos também muitos problemas de qualidade do atendimento, de respeito aos direitos humanos, de situações em termos de internações involuntárias ilegais nessas clínicas. Então nós temos um problema e a fiscalização é uma tarefa nossa. Por que eu volto a dizer que é preciso ver a direção? A direção do lado da monocultura da internação diz que a solução é um credenciamento de clínicas desse tipo pra se resolver o problema. A solução que aposta que a resposta tem que ser complexa para problemas complexos ela diz: é preciso internação, é preciso ter leitos, mas é preciso ter também o conjunto de respostas tanto da rede de saúde como da rede inter-setorial – assistência social, trabalho, educação, etc – pra encaminhar esse problema. Existem interesses econômicos, certamente, a área da saúde é uma área pontilhada por interesses econômicos, tanto da industria farmacêutica como da industria de equipamentos, como da rede de serviço de saúde , mas acho que isso não é também uma condição que exista só no campo da saúde. A função do Estado é controlar, é fiscalizar.

Voltando ao tema da mídia, essa complexidade deveria ser trazida pela mídia: e as comunidades terapêuticas, o que elas representam? Elas têm uma função? Elas também podem ter uma intervenção que acaba produzindo mais isolamento social daquelas pessoas? Então por que que não complexifica o debate de um tema complexo? Essa é minha principal crítica ao tratamento que a mídia vem fazendo. Por exemplo, tem uma rede de TV muito importante, TV e rádio, no Rio Grande do Sul, que estabeleceu e já teve que rever isso, que estabeleceu: crack nem pensar. E definiu inclusive meta de alguns meses nos quais não teria mais crack… ai teve que rever. Entretanto essa mesma rede recentemente publicou uma matéria de capa, no jornal Zero Hora, uma excelente matéria com o modo de funcionamento de um consultório de rua do Ministério da Saúde, mostrando o problema, a complexidade, como abordar o usuário, mostrando não só o lado da calamidade mas o do processo capaz de responder a essa necessidade social. Então tudo é processual, acho que a mídia pode ir se sensibilizando. No limite, esse pânico social reforça o estigma, reforça o preconceito. E torna mais difícil o acesso ao tratamento, porque uma das barreiras a esse acesso é o estigma, o próprio usuário introjeta pensando que não vai lá, e ao mesmo tempo o acesso não é assegurado pois se colocam barreiras de natureza preconceituosa e ideológica: se o caso não tem solução, por que eu vou facilitar o acesso? Um raciocínio fatalista, se você tiver um raciocínio desse você não enfrenta problemas complexos. 

FONTE: http://coletivodar.wordpress.com/2010/10/14/entrevista-exclusiva-pedro-gabriel-delgado-fala-sobre-crack/