sábado, 4 de dezembro de 2010

A economia do crack

Por Edmilson Lopes Júnior – Prof. do Departamento de Ciências Sociais da UFRN



Desde quarta-feira, dia 01, acontece, na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, o “II Seminário Internacional Sobre Violência e Conflitos Sociais”. Promovido pelo Laboratório de Estudos da Violência, o evento é organizado pelo Professor César Barreia. Na quarta-feira, em uma mesa redonda intitulada “Violência, segurança e cidadania”, o Professor Luiz Flávio Sapori (PUC-Minas) abordou o impacto do consumo do crack no aumento das taxas de homicídios em algumas partes do país. Abaixo, expresso, com liberdade, algumas das informações e proposições apresentadas pelo professor mineiro.
Embora feito à base da pasta-base da coca, como a cocaína, o crack impulsiona uma dinâmica econômica nova, que redefine substancialmente o mercado de drogas ilícitas no Brasil. O não entendimento dessa nova realidade tem implicado em ações policiais ineficazes. E essa incompreensão é partilhada tanto pelo judiciário quanto pelo setor de saúde pública. Por isso mesmo, a explicitação dos contornos específicos do insidioso e perverso mercado do crack é uma tarefa fundamental a ser assumida pela economia e a sociologia no nosso país. Para tanto, nada de respostas apressadas. Formular questões substantivas é mais importante.
Uma primeira indagação a ser feita é: por que o comércio do crack no Brasil, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, não se traduziu em uma onda com uma duração temporal delimitada? Ora, em algumas cidades, como São Paulo, já são mais de duas décadas de entrada em cena do consumo do crack, sem sinais de esgotamento. Muito pelo contrário, a onda se irradia pelo país, incorporando, nos últimos cinco anos, regiões remotas, como áreas de garimpo na região amazônica ou pequenas cidades do semi-árido nordestino.
Droga dos mais pobres, embora também consumida por jovens e, minoritariamente, por adultos de classe média, o crack impulsionou um mercado que se beneficiou do crescimento econômico dos últimos anos. Paradoxalmente, o aumento do poder de compra das classes populares criou condições para que seus jovens e adolescentes pudessem ingressar nesse mercado perverso. Não apenas há mais dinheiro em circulação, mas também um aumento substancial de bens que podem ser trocados por pedras de crack nas bocas. Esses bens, sejam eletrodomésticos ou materiais de construção civil, são subtraídos de suas famílias pelos viciados e usados como moeda de troca com os traficantes. E essa é uma realidade presente tanto em pequenas cidades do Nordeste quanto na periferia urbana de metrópoles como São Paulo ou Porto Alegre.
Essa é uma dimensão que, embora revele regressão do ponto de vista da transação econômica, na medida em que se traduz em uma volta ao escambo, também expressa a extrema flexibilidade do mercado do crack no Brasil. Assim, quase todos os bens a que as classes populares podem agora ter acesso são passíveis de serem transformados em pequenas quantidades da droga.
O crack não é, ao contrário de um mito muito difundido, uma droga barata. Uma pedra de crack custa, em média, R$ 10,00. Mais ou menos a metade do que os consumidores de cocaína pagam por um papelote. E é equivalente a uma trouxinha de mercado. Não é, portanto, pelo preço que se explica o poder de atração da droga e muito menos a sua dinâmica economia. Encerrados nos seus ambientes de classe média, autoridades policiais, jornalistas e membros do judiciário, durante muito tempo, pensaram o mercado do crack como coisa pequena, conduzida por traficantes medíocres, de vida e ambições curtas. Aos poucos vão se dando conta que a droga nem é tão barata assim e que o seu comércio movimenta quantias significativas e é, sim, muito lucrativo.
Pela sua dinâmica, o mercado do crack é um desafio para o poder judiciário. Isso porque, diferentemente do que ocorre com a cocaína, por exemplo, há uma zona cinzenta na qual é muito difícil separar claramente o usuário do traficante. Os viciados em crack participam ativamente do mercado, revendendo pequenas quantidades. Não é raro, que pessoas introduzam os seus próprios familiares no consumo para garantir a venda. A prisão desses usuários, enquadrados como traficantes, pode abarrotar ainda mais as nossas cadeias e presídios, mas significa sempre muito pouco, quase nada, em enfrentamento real aos derivados da expansão do vício no crack.
Por outro lado, o mercado do crack não se estrutura, como ocorreu tradicionalmente com o mercado da cocaína, em torno de grandes estruturas operacionais. A sua lógica é a do mercado popular de massas: pequenas empresas (“bocas”) conduzidas por pequenos traficantes. No que diz respeito ao lucro, essa situação se traduz em um ganho médio por unidade (pedra) também pequeno. Mas, aí é que está a força desse mercado, a venda no varejo, a muitos consumidores, garante o lucro.
As formas de gestão, de consumo e de regulação desse mercado em expansão têm alimentado a violência urbana no Brasil nesta década que agora chega ao fim. Produzir políticas e formas de enfrentamento eficazes para minorar os sofrimentos dos que têm familiares e/ou amigos tragados pelo consumo do crack é um dos maiores desafios para a construção de uma segurança pública cidadã no Brasil na próxima década. E o êxito dessas políticas está diretamente ligado à capacidade de os seus formuladores e executores alicerçarem suas proposições em conhecimentos da realidade, não em preconceitos e lugares-comuns.
O trabalho de pesquisa do Professor Sapori é uma referência para todos quantos não tenham medo de olhar à beira do abismo. Decifrar o abismo, sabemos desde sempre, é a melhor atitude para quem não quer ser tragado por ele.


FONTE: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4823467-EI17080,00.html

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