O uso cotidiano da cannabis sativa, conhecida no Brasil popularmente como maconha, é uma realidade. O perfil do usuário é variado, não estando isolado no interior de uma classe. A maconha está, hoje, num emaranhado de problemas: envolve o desmatamento ilegal para o plantio, a liberdade para “marginais da globalização” exercer uma tirania sobre populações locais, a manipulação de substâncias sem qualquer forma de regulação legal e a estigmatização de parcelas da sociedade.
No Brasil e no Mundo, debates são travados entre profissionais das áreas médicas, legais e na sociedade civil, em reconhecimento à relevância do problema no quadro da cidadania e do exercício de direitos. Embora esteja em discussão, o trato coercitivo às práticas ligadas à cannabis sativa ainda possui forte cunho policial com efeitos desastrosos de estigmatização.
No caso particular do Brasil, o papel do Estado passa a ser questionado em virtude de leis e táticas visigóticas: leis como a Nº 6.368 de 1976 sobre a “prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido”, que no seu 3º capítulo trata sobre crimes e penas, resume num único artigo (o art. 12) dezenove ações, dentre as quais “importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor (...) trazer consigo, guardar, prescrever, etc.”, relacionadas ao consumo de entorpecentes, ações que ampliam bastante a capacidade de rotular sujeitos tendo como efeito sua desumanização. Curiosamente, a lei só seria revogada 26 anos depois, em 2002 com a Lei nº 10.409 e revogada novamente em 2006 com a Lei nº 11.343 que, além de criar o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas tornou ações como “adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer [drogas] consigo para consumo”, de menor potencial ofensivo.
Esses 26 anos em que a Lei Nº 6.368/1976 ficou em vigor denotam o seu caráter policialesco com um forte ranço de ditadura militar. Essas 19 ações consideradas criminosas como o plantio, o transporte e o consumo, representam situações diferentes que requerem um trato e uma problematização diferente. As mudanças recentes, já que depois de 26 anos a lei foi modificada duas vezes num lapso de quatro anos, mostram que a sociedade já não suporta o caráter policialesco dispensado às práticas ligadas ao uso e comercialização de drogas.
Caíram na desconfiança popular as operações da polícia que visavam erradicar o plantio promovendo queimadas e que ainda ocorre ocasionalmente mesmo a questão ambiental sendo um problema de primeira importância e em pauta nas agendas dos Estados nacionais em torno do planeta. As ações policiais são todos os dias confrontadas entre a crença e a descrença da sociedade na eficácia dos aparelhos oficiais de coerção. Idéias suspeitas, fantasiadas de moral não convencem com a mesma eficácia que há poucos anos víamos convencer.
De tudo isso depreende que, embora a discussão envolva as idéias mais polvorosas, os sujeitos que estão envolvidos nessa problemática são das diversas ordens. Ousando uma breve hipótese acerca dos sujeitos que já foram esquadrinhados pelo art. 12º da lei de 1976 e conseqüentemente punidos em 26 anos de vigência dessa lei, poderíamos nos perguntar quantas vidas foram desconcertadas por microquerelas ligadas à maconha? Outro problema seria a do campo de possibilidades para o abuso de poder da polícia nos inúmeros casos que alguns de nós conhecemos de experiência ou de observação em que o limite entre o diálogo e a violência é rompido. E o desenrolar da discussão suscita questões outras como a de até quando estarão os sujeitos à mercê de tal violência?
O mundo não dorme para os problemas e a cada momento em lugares espalhados pelo planeta, ações públicas de descriminalização e legalização de uso e porte, ações civis como a marcha mundial da maconha, o engajamento político de atores das diversas ordens sociais, inclusive o de três ex-presidentes sul-americanos, estão a concorrer pela mudança desse quadro já antigo de criminalização e marginalização de práticas culturais. Exemplos clássicos como o caso da descriminalização na Holanda, do uso medicinal na Califórnia já podem ser colocados ao lado da recente legalização do porte de drogas no México e do posicionamento do supremo tribunal argentino que despenalizou recentemente a posse de maconha e o seu consumo em local privado.
O que vemos acontecer em torno do mundo não se trata apenas de um senso de tolerância às drogas e à maconha. Vemos se delinear um estilo de vida ou a oficialização de um aspecto da vida dos sujeitos que faz parte do cotidiano, de práticas reconhecidamente históricas e culturais. Vemos ocorrer diante dos nossos olhos a luta por direitos, as lutas históricas e recentes pela liberdade, pela autonomia e pela verdade. Vemos se delinear o esboço de uma cidadania local com vistas à mundialidade, ao trânsito entre os ambientes e as culturas em que o papel da legalização da cannabis sativa aparece como um elemento constituinte da conquista de direitos fundamentais e cidadania. Vemos, por fim, emergir novos sujeitos de direitos, multifacetados pelas suas duplas cidadanias, pela “indigenização da modernidade” e pela diversidade.
A questão da maconha requer, portanto, muito mais do nosso entendimento do que temos ocupado em entender nesses últimos anos. Uma explosão de microconflitos e microrevoluções ocorreu nas últimas décadas concorrendo para que diversos sujeitos unidos em grupo, diversos grupos movidos por interesses, reivindicassem não mais uma simples liberdade. Essa explosão representa uma resistência ao aprisionamento das cadeias da ignorância, significa que o absurdo não pode persistir por mais tempo. Portanto, entendido a dimensão mais relevante da discussão sobre maconha, não se trata de defender seu uso, mas de problematizar a violência em torno de seu nome, não podemos ficar indiferentes aos problemas que são o verdadeiro nó da questão: a nossa lucidez diante dos fatos, a nossa compreensão da sua complexidade e um posicionamento crítico.
*Texto publicado na edição #09 do Lado [R]
José Duarte é licenciado em Ciências Sociais e mestrando em Antropologia Social pela UFRN e tem desenvolvido pesquisa sobre violência urbana
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